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Objeção de consciência não pode servir para práticas discriminatórias

6 de outubro, 2015

Texto publicado no portal Justificando

 

O trajeto era de volta para casa depois uma viagem inovadora. Papa Francisco visitou Havana e a 5a Avenida, em Nova York. Tudo ia bem nos sermões sobre refugiados, pobreza ou perdão aos presos. Não sei se ele já estava cansado de agenda tão politicamente global e laica para a infâmia do mundo quando anunciou ser legítimo um funcionário de cartório recusar-se a celebrar casamento entre pessoas gays. Isso se chama, na lei religiosa, “objeção de consciência”. Em nome do dogma religioso de que casamento é encontro afetivo e sexual apenas entre homem e mulher, um tabelião poderia fechar as portas do cartório para outras formas de existência familiar.

Verdadeiramente queria crer na hipótese do cansaço do papa, mas ela seria só uma desculpa para o jeito torto em que um tema tão importante foi anunciado ao microfone no corredor de um avião. A objeção de consciência é um dispositivo jurídico cada vez mais requerido para explicar comportamentos estranhos – o médico que recusa atendimento a mulheres em serviço de aborto legal; o funcionário de cartório que fecha as portas para a união civil de dois homens; ou o farmacêutico que retém receita de medicamentos contraceptivos. Os manuais de direito estão recheados de argumentos que sustentam haver conflito entre direitos nesses casos: o da mulher ou dos casais que buscam saúde ou casamento, de um lado, e, de outro, o dos funcionários que não desejam violar seus sentimentos religiosos.

Não há conflito entre direitos, pois essa me parece só uma tese elegante para encobrir rastros discriminatórios. Acredito na sinceridade dos sentimentos religiosos e na hipótese de que tabeliães, médicos e farmacêuticos sintam-se incomodados em oferecer serviços e bens que violem suas práticas privadas de vida. No entanto, antes de apelarmos para a recusa de atendimento como forma de salvaguardar a integridade da consciência, há saídas simples para o bem-viver na coletividade. Uma delas é organizar plantões nos serviços de saúde em que médicos com restrições de consciência ao aborto não atuem em programas de referência; outra delas é garantir que balconistas de farmácia ou tabeliães atuem em equipes moralmente diversas. A fórmula é simples – em teoria política, descreve-se como “políticas de acomodação”, isto é, as crenças são cuidadas por arranjos institucionais, mas não há restrição de direitos para quem busca os serviços.

Se é simples assim, por que os manuais de direito ou de teologia insistem em falar em “conflito entre direitos”? O direito da mulher ao aborto estaria em conflito com o direito do médico à consciência, dizem os manuais. Arrisco uma resposta ainda mais simples: a tese do conflito ganha voz por um equívoco interpretativo que supõe ser a consciência bem e valor supremo, seja na ordem constitucional, seja na ordem divina. O direito à liberdade de expressão e consciência é uma das formas de fundamentarmos o dispositivo da objeção de consciência na ordem jurídica – mas não há caráter absoluto na consciência diante de outros princípios constitucionais. E se consideramos a saída administrativa das “políticas de acomodação” sequer há necessidade de postularmos o conflito entre princípios.

É assim que voltamos ao papa Francisco. Tabeliães até podem se recusar a celebrar casamentos, desde que não haja incômodo aos casais que buscam o cartório. O tabelião objetor pode se especializar em outros atos administrativos, esquecendo a seção de casamentos. Sua consciência não será provocada pelo amor e pela felicidade de casais fora da norma heterossexual, nem os casais serão constrangidos com sentimentos discriminatórios em um dia tão festivo da vida. Da mesma maneira farão os hospitais ou as farmácias: médicos, balconistas ou farmacêuticos objetores trabalharão distantes dos serviços de aborto legal ou das prateleiras de anticoncepcionais. Mas se pelo acaso de uma urgência for preciso que o tabelião celebre um casamento gay, um farmacêutico entregue uma pílula do dia seguinte ou o médico realize um aborto, assim deverá ser feito sem qualquer recurso às crenças individuais. Não há objeção de consciência institucional, ou seja, os serviços devem ser sempre oferecidos a quem deles necessitar. A tese final para o dever da assistência é também simples: objeção de consciência não protege práticas discriminatórias em nome da religião.

Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira).  Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.
Na foto: Kim Davis, tabeliã norte-americana que se recusou a casar dois homens, alegando objeção de consciência.

 

Leia o artigo também no portal Justificando, aqui.

Autor: Debora Diniz

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