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‘O silêncio nunca salvou as mulheres’, diz antropóloga ameaçada de morte por defender descriminalização do aborto

29 de março, 2022

Exilada desde 2018, Debora Diniz lança livro sobre esperança escrito em parceria com a teóloga feminista Ivone Gebara

Por: Renata Izaal/ O Globo

Debora Diniz deixou o Brasil em 2018 e passou a integrar o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos após receber ameaças de morte de grupos fundamentalistas cristãos por seus estudos e defesa da descriminalização do aborto no Brasil. Ivone Gebara foi processada e punida com o silêncio obsequioso, o mesmo imposto ao teólogo Leonardo Boff, e deixou o Brasil em 1995 depois de criticar os dogmas morais da Igreja Católica, sobretudo no que diz respeito à centralidade masculina na instituição e aos direitos reprodutivos de mulheres pobres. Ficou dois anos fora.

Mas o que podem ter em comum uma antropóloga laica de 50 anos e uma freira, filósofa e teóloga de 80, além da triste experiência do desterro? No livro “Esperança feminista” (Rosa dos Tempos), elas percorrem juntas 12 verbos — “como ouvir, escutar, celebrar e desobedecer”, debatidos com mulheres em lives semanais — que consideram importantes para, nas palavras de Debora, “um futuro de transformação”.

A antropóloga conversou com O GLOBO por chamada de vídeo de seu exílio nos EUA. Ela conta que decidiu se manter firme, apesar das ameaças constantes, explica que o encontro com Ivone a fez repensar o próprio feminismo e afirma que as mulheres precisam tirar das mãos do patriarcado as narrativas sobre o aborto.

Como você está?

Eu me mantenho no Programa de Proteção e continuo investigando os casos. Houve avanços e sentenças, não perdi nenhum. Eles apenas são longos e demandam um trabalho afetivo e político intenso. Sempre que o tema do aborto volta, o redemoinho de ódio contra mim retorna, mas nada se compara ao momento em que saí do Brasil. Aquelas ameaças eram como uma operação de terrorismo, eu não sabia se eram reais. Hoje acontece o que chamo de ameaça de superfície: pessoas nas redes sociais dizendo “eu vou matar você”. Não é menos sério, mas quando vem da deep web, é muito mais covarde.

Você se mantém firme?

Não me manter firme era dar muita vitória, né? Mas eu tenho perdas gigantes. Não vejo meu pai e minha mãe há três anos, fiquei tensa na pandemia. Tentei ir vê-los, mas foi uma experiência ruim chegar na casa deles com escolta policial. Eu sei que vou voltar um dia, serei um corpo novamente.

Sente raiva?

Aprendi com (a escritora americana) Audre Lorde a diferenciar raiva e fúria. O que esses odiosos dirigem a mim é fúria. A raiva é parte de um conjunto de afetos transformadores. Ela pode permitir que nos unamos a outras mulheres pela indignação. Eu tenho raiva e aprendi que o medo me paralisaria. Não tenho pretensão de ser mártir ou heroína, tanto que saí do país. Mas o meu silêncio não vai me salvar, nunca salvou as mulheres. Eu me movo por um reconhecimento das minhas forças.

Por que escrever sobre esperança?

A ideia de esperança foi cooptada pela tradição cristã como um afeto de além-mundo. Com Nietzsche, virou um afeto dos fracos, daqueles que não eram capazes de viver o presente. No livro, nós não a definimos, mas fazemos um passeio por verbos que permitem o seu exercício, como ouvir, escutar, celebrar e desobedecer. Esperança é sobre a prática feminista, sobre a construção coletiva de um presente de encontro e um futuro de transformação. E uma transformação com valores feministas não é só sobre mulheres. É sobre igualdade, liberdade e justiça.

Como você e Ivone escreveram o livro juntas?

Eu disse a Ivone que se o livro seria sobre esperança, não poderíamos fazê-lo sozinhas. Então durante 12 semanas, nos encontrávamos às sextas-feiras, às 20h, nas redes. Uma multidão entrava. Eram mulheres do Crato, de Marajó, de Moçambique! Muitas pessoas convocadas pela Ivone que nunca me escutariam, mas estavam ali celebrando esses verbos. A Ivone é mais organizada e logo vinha com o texto dela. Eu precisei de mais tempo porque esses encontros foram uma explosão, um delírio de ideias.

Na Língua Portuguesa, esperança também é verbo: esperançar. Em entrevista ao Segundo Caderno, o professor Silvio Almeida falou que devemos devolver aos jovens brasileiros a capacidade de sonhar.

Quando você fala sobre sonhar, um dos verbos no livro é imaginar. E por que ele é importante? Só quando nós imaginamos outras formas de vida, por exemplo as das mulheres negras, e aqui podemos fazer uma lista, nós começamos a realizar. Imaginar é um verbo ético que permite encontros que as nossas conformações de vida não nos permitem. É sobre sobreviver intergeracionalmente e na interseccionalidade das nossas vidas.

É decolonizar o feminismo branco e burguês, como faz o feminismo negro? Imagino que algo assim deve ter acontecido entre você, uma antropóloga laica, e Ivone, uma mulher de fé.

Há 200 anos, Ivone estaria na fogueira. É a única mulher na História da Igreja Católica que levou um voto de silêncio e não foi expulsa. Ela é uma senhora de 80 anos, e eu de 50, mas as duas temos experiências de desterro. Nunca nos encontramos presencialmente, mas participamos de um evento que reuniu mulheres religiosas e laicas. Eu me dei conta de que o feminismo da minha geração, e o da geração que me segue, olhou pouco para o que essas mulheres de fé fizeram por nós. Porque as mulheres são mulheres de fé, o feminismo laico é exceção. Esse foi um exercício não apenas de conexão com quem veio antes de mim, alguém que permitiu que o castigo em mim fosse menor do que foi nela, mas também para exercitar a esperança para além dos limites de “com quem eu falaria e como eu falaria”.

O que te surpreendeu nesses encontros de manufatura do livro?

Na escolha dos verbos tivemos a colaboração de um grupo ampliado de mulheres, todas muito mais jovens do que eu e Ivone. Do meu lado, eu disse “quero escutar e ouvir”. A Ivone escolheu “lembrar” e “desobedecer”. É sensacional que “desobedecer” tenha vindo dela. Ela também escolheu “celebrar”. Por que não fui eu quem escolheu esse? Honestamente, esse verbo não sairia de mim. E foi difícil de escrever, talvez pela responsabilidade, a culpa e o privilégio. O curioso é que quando falamos sobre acalentar, a Ivone entendeu “acariciar” e me questionou: “Debora por que você botou acariciar para uma freira?”. Quando entendeu que eu não tinha dito isso, ela escolheu:”Vou trabalhar esse ato falho e escrever”.

Você escreve sobre “imaginar a outra com ternura”. Sua relação com Ivone passa por isso?

Com a Ivone e com o mundo. Para a minha geração, a ternura era quase uma fraqueza. Outros afetos eram necessários para ser feminista, resistir e falar de um tema em que o fanatismo é logo cooptado, como acontece com o aborto. Mas o mundo é mais fácil quando nós temos a ternura. Não quero dizer que não temos diferenças. Nós temos diferenças abissais dentro do feminismo. Por isso escutar é tão importante.

O feminismo exige escuta?

E exige também um gesto ativo de desimaginação de si. É uma tarefa nossa o rompimento dos privilégios, das vantagens e dos merecimentos da colonialidade. Não é apenas das mulheres negras, das indígenas e das atípicas. Cada mulher tem sua maneira de fazer isso. Para mim, estar nas redes e ser antropóloga são exercícios permanentes de desimaginação sobre os meus poderes e sobre com quem eu aprendo.

A literatura também é um exercício de desimaginação?

A ficção é uma viagem de desimaginação ao nos encontrarmos com a imaginação do outro. Você não lê Itamar Vieira Júnior ou Conceição Evaristo e não se desimagina. Não há como ler “Nada digo de ti que em ti não veja”, da Eliana Alves Cruz, e não se desimaginar. Desimaginar-se, eu diria, é uma pré-condição para a imaginação ser mais inclusiva.

Notei que você usa muito a palavra “assombro”. Por quê?

Ele pode vir pela dor, que é talvez a história mais comum das mulheres. É um afeto que gera um estado de indignação, mas algumas vezes o nosso estado de assombro é tão protegido pelos privilégios que precisamos de um aprendizado ativo. É a pergunta que fazemos no livro: por que não podemos aprender sobre a expressão do assombro na palavra das mulheres? Para isso precisamos rever os currículos porque eles dedicam muito tempo a aprender o que os homens falaram. E os homens do Norte, né?

Precisamos imaginar uma nova narrativa sobre aborto no Brasil?

Para mim, um dos maiores desafios do feminismo é conseguirmos fazer novas perguntas ao racismo, à misoginia e à homofobia. O que o patriarcado faz é criar sua narrativa e nos enredar nela. As perguntas sobre o aborto estão estabelecidas em torno de religião, que é quando a vida tem início; ciência, quando a vida tem início e como se define uma pessoa; e na proteção de uma ideia de maternidade. Por que isso? Porque controlar a reprodução biológica é controlar a reprodução social da vida. Não é só dizer com quem, como e quando uma mulher tem filhos, mas como serão organizadas as famílias do futuro. O aborto não é sobre as questões metafísicas impostas pelo patriarcado. É sobre questões políticas impostas sobre a reprodução social da vida.

E quais são as perguntas a serem feitas?

Por que prender uma mulher? Não cabe uma política criminal para uma necessidade de saúde. E também falta informação às pessoas. Elas não imaginam que 500 mil mulheres fazem aborto no Brasil todos os anos. Se é uma mulher em cinco, então é sua mãe, sua irmã, sua amiga, é você! A pergunta então é: como eu lido com isso que é tão comum às mulheres sem colocá-las na prisão?

O Brasil vai entrar na onda verde latino-americana?

Especialmente no Sul global temos um momento de solidariedade feminista. Não quero fazer futurismo, mas temos essa solidariedade instalada, temos o movimento feminista mais diverso das Américas e uma ação no Supremo que pede a descriminalização até 12 semanas. Na Argentina foram 20 anos desde que Marta Lanis fez o lenço verde em 2001, e 11 projetos de lei. O redemoinho de ódio do Bolsonarismo teve sempre o seu nó silencioso no gênero e na sexualidade. Por isso Bolsonaro se pronunciou sobre a Argentina e a Colômbia. Por isso a Damares é tão importante. Ela é a operação do patriarcado por meio de uma representante dos nossos corpos.

Em que pé está a ação no STF?

A relatora é a ministra Rosa Weber, que será a próxima presidente do STF e poderá levar ações com ela ou distribuí-las. A fase das audiências públicas foi superada, e a ação pode ser colocada quando a Corte considerar adequado. Isso pode levar tempo. A da anencefalia levou oito anos.

Estamos em ano eleitoral, e pré-candidaturas tentam se distanciar do que chamam de “pautas identitárias”. O que acha disso?

Todas as questões distributivas são identitárias. A mulher que precisa de trabalho tem cor, classe, sexualidade e filhos. O vivido é sempre vivido desde os nossos corpos e pertencimentos. Essa questão é uma marca permanente do patriarcado. É um debate falso, no qual até a esquerda embarca.

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