Qual a melhor política para reduzir abortos? A criminalização do procedimento é uma política efetiva? Quem é a mulher que já fez aborto no país? Entenda evidências sobre o tema
Por Marcelo Medeiros e Gabriela Rondon
Publicado originalmente em Nexo Jornal
Abortos são muito comuns. Ocorrem com muito mais frequência do que as pessoas imaginam. Mas como o assunto é tratado como tabu, ninguém fala sobre ele. É muito provável que uma pessoa de sua família ou de seu círculo de amizades tenha feito aborto e você sequer teve conhecimento disso. A grande quantidade de abortos acontecendo em condições precárias faz do aborto um assunto de saúde pública. Por essa razão, a definição de uma política pública para aumentar a segurança dos abortos no Brasil, e assim proteger a saúde das mulheres, ganha muito sabendo-se quantos abortos são feitos, como eles são feitos e quem os faz.
1. Qual é o número real de abortos no Brasil?
Ter uma estimativa exata é difícil, porque muitas mulheres fazem aborto em segredo. Há dois métodos principais para se estimar o número de abortos por ano no Brasil. O primeiro é baseado em internações por complicações de aborto. O segundo é baseado em questionários. O método das internações exige ajustes, afinal metade dos abortos induzidos não resulta em internação. O método dos questionários usa a técnica de urna, na qual a mulher responde o questionário sem identificação e deposita a resposta em uma urna secreta. Esta metodologia também precisa de ajustes para representar toda a população, pois é aplicada apenas entre mulheres que sabem ler e responder o questionário. Os dois métodos convergem a um número em torno de meio milhão de abortos por ano no Brasil.
2. Quem é a mulher que já fez aborto no Brasil?
Há muitos estereótipos sobre a mulher que fez aborto. No geral, estão errados. A mulher que fez aborto no Brasil é a mulher comum. Predominantemente são, hoje, mães, casadas, de todas as religiões, e todas as classes sociais, vivendo em todas as regiões do país e em todos os tamanhos de município. Mas há, sim, alguma diferença entre grupos. O aborto é mais frequente nas regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste, em capitais, entre mulheres com escolaridade até quarta série/quinto ano, de renda familiar total mais baixa (até 1 salário mínimo), amarelas, pretas, pardas e indígenas, e as hoje separadas ou viúvas. É ainda maior entre as que hoje têm filhos do que entre as que nunca tiveram.
3. Quais as características das mulheres quando abortam?
Temos mais informações sobre quem já fez aborto alguma vez na vida do que sobre quem acaba de fazer. Mas os resultados obtidos em pesquisa na região Nordeste ajudam a desenhar um perfil das mulheres no momento do aborto. São, na maioria, mulheres no pico da idade reprodutiva, metade com idades entre 18 e 29 anos. Mas há ainda muitas mulheres mais jovens, cerca de 17% do total, entre 13 e 17 anos, o que mostra a importância de políticas públicas já entre meninas. Metade das mulheres já são mães quando abortam, o que indica que mulheres estão controlando o tamanho de suas famílias. Muitas fizeram ou farão um segundo aborto: entre as que abortaram, um quarto fez mais de um aborto na vida.
4. Como as mulheres fizeram aborto?
Isso varia ao longo dos anos. No passado o aborto era feito quase sempre por métodos muito inseguros. Nas últimas décadas houve uma transição para métodos mais seguros. Atualmente, a maior parte das mulheres usa o medicamento recomendado pela Organização Mundial da Saúde, o misoprostol, cujo nome comercial é Citotec. Preocupante é que algo em torno de um quinto delas ainda usa métodos inseguros, como introdução de objetos no útero, ou mesmo uso de substâncias químicas perigosas. Métodos inseguros agravam o problema de saúde pública e colocam mulheres em riscos totalmente desnecessários. Sob supervisão de saúde, o aborto é, quase sempre, um procedimento de pouco risco e baixa complexidade.
5. Quando a vida realmente começa?
A ciência não tem uma resposta para isso. Um óvulo é uma célula viva já antes da fecundação. Essa é uma pergunta usada para determinar julgamentos morais no aborto. Na realidade, o que a pergunta quer realmente saber é “a partir de que momento um conjunto de células constitui uma pessoa”. A ciência também não tem resposta para isso. A moral de base religiosa tem, mas a resposta varia de religião a religião.
6. Qual a melhor política para reduzir abortos em um país?
Políticas de contracepção têm se mostrado a forma mais eficiente de se reduzir abortos em um país. Contracepção inclui a responsabilidade masculina: se os homens usassem, sempre, preservativos, a queda no número de abortos seria significativa. A disponibilização e incentivo ao uso de contracepção feminina, também, por razões um tanto óbvias. Essas políticas incluem parar de se tratar sexo como um tabu. Sexo faz parte da vida e da rotina das pessoas e deve, portanto, ser tratado assim nas escolas, igrejas, televisão, etc. Isso facilita a aceitação e o uso de contracepção masculina e feminina e, consequentemente, a redução no número de abortos.
7. A criminalização contém os abortos?
Nos países onde a criminalização foi suspensa não houve um aumento substantivo do número de abortos. Na verdade, a descriminalização combinada a políticas de saúde sexual e reprodutiva levou à diminuição desse número em vários países. Portanto, tudo indica que a resposta é não, a criminalização não é uma política efetiva de contenção do aborto. Além disso, suas consequências negativas são fortes demais para que seja justificada como política razoável. A criminalização gera um mercado de clínicas clandestinas de aborto, cujo custo é alto e a qualidade, baixa, uma rede de tráfico internacional de medicamentos abortivos que opera dentro e reforça a estrutura de tráfico de outras drogas, e, certamente mais importante, limita a busca de assistência de saúde adequada por parte das mulheres que já abortaram. Pelos altos números de aborto no país – maiores do que os de países com políticas mais amplas de saúde sexual e descriminalização do aborto – a criminalização não dá sinais de ser um mecanismo de contenção eficiente do aborto.
Bibliografia
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