por Gabriela Rondon
Publicado originalmente no Jota
Já não se fala de outra coisa nas redes sociais. Em um intervalo de cinco dias, duas mulheres foram atacadas sexualmente dentro de ônibus em São Paulo, por um mesmo sujeito. Ambas tiveram seus corpos violentamente invadidos: uma, por esguichada de esperma no pescoço, a outra, pela roçada do pênis ereto e toques desautorizados. Para o primeiro episódio, a desclassificação do crime de estupro para contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor livrou o agressor de prisão preventiva. Já no segundo, a prisão foi mantida. Quinze passagens por delegacias por infrações semelhantes compunham o histórico do acusado.
Seria equivocado dizer que o debate público sobre o caso se resume a uma disputa de dogmática penal entre o crime ou a contravenção, ou a uma pergunta sobre como punir mais e melhor. As inquietações sobre o que aconteceu no ônibus são múltiplas e complexas, e se configuram especialmente como uma disputa de narrativa sobre o que é ou não uma grave violência contra a mulher, de que maneira nossos corpos são diariamente despossuídos e quão pouco responsivas são as reações institucionais às variadas violências que nos vulnerabilizam pelo gênero. Mas quando essa disputa de narrativa se dá se utilizando do vocabulário penal, é possível abrir segundas perguntas.
O caso lançou um debate intenso sobre a misoginia do direito penal, ou, em termos mais simples, sobre a distância entre o que os penalistas entendem por violência, grave ameaça ou constrangimento e em como se concretizam essas experiências na vida das mulheres. Sim, é importante apontar que a forma como jurisprudência, doutrina e mesmo senso comum interpretam essas categorias para imaginar o que se enquadra como crime de estupro pode com freqüência invisibilizar como o estupro de fato acontece. O comum da violência não é o homem desconhecido, num beco escuro, que ameaça uma mulher na ponta da faca – embora essa cena de horror não possa ser descartada dos medos diários das mulheres. O agressor comum está na casa, na rede de afetos, nos ambientes conhecidos em que as mulheres circulam para o trabalho, a igreja, o mercado.
Mas mesmo quando a violência acontece no transporte público, a cena é menos óbvia do que a testemunhada essa semana. A ousadia do pênis exposto no ônibus em plena luz do dia e seu esperma na vítima nos chocam pelo horror da invasão extrema do corpo, que sabemos não estar protegido no espaço público. Mas a cena também beira o grotesco, e o violentador é muito possivelmente, segundo contam notícias, alguém em sofrimento mental.
Para este episódio que se confronta tão abertamente com uma moral compartilhada, não há a clássica dúvida do relato da vítima. As provas de autoria e materialidade do acontecido são evidentes, como quase nunca costumam ser. Houve bando de homens prontos para o linchamento, houve também aqueles que chamaram para o controle da ordem até que polícia pudesse chegar e conduzir a prisão em flagrante. Para o homem negro, pobre e que facilmente se encaixa na figura monstruosa do predador sexual, sobraram clamores de punição severa e imediata.
Em um país que contabiliza registros oficiais de mais de 45 mil estupros por ano – sem contar aqueles que nunca são denunciados – e tem notória incapacidade de prestar devido cuidado às vítimas, inclusive de atenção em saúde, a rapidez da opinião pública em visibilizar o agressor como o monstro que precisa ser contido precisa nos levar a refletir um pouco mais.
Não há nenhuma dúvida de que as mulheres por ele atacadas sofreram grave violência, e de que o Estado falhou terrivelmente em ignorar 15 episódios repetidos de mesma natureza. Mas talvez a resposta mais fácil neste caso seja a tentação de condená-lo exemplarmente como o sujeito que está na raiz da violência sexual contra as mulheres. A inquietação que emerge é o quanto a certeza de sua classificação como o “outro” violentador, facilitado por seus marcadores de raça, classe e loucura, desresponsabiliza ou dificulta visualizar os outros 45 mil casos comuns provocados por aqueles que não se reconhecem como mais próximos do caso do ônibus do que deveriam. É no mínimo uma vítima a cada 11 minutos.
Precisamos pensar nas respostas difíceis, e elas passam necessariamente por falar de gênero no espaço público, na casa, na escola, nas instituições jurídicas, como as mulheres têm feito desde que o caso foi noticiado e antes disso. Nesse ponto, todas nós, concordando ou não com a classificação penal dada à violência, estamos juntas.