Um bebê indígena do povo Kaingang morreu assassinado perto do fim de 2015 —uma punhalada no pescoço enquanto a mãe o alimentava na rodoviária de uma praia em Santa Catarina. A família se movia de um canto a outro para vender bugigangas para turistas no verão. Do menino miúdo não vi foto, só soube que tinha por nome e sobrenome a herança colonial, Vitor Pinto. Também não ouvi choro ou desespero, preciso imaginá-lo vivo e morto, mas minha imaginação é curta. Fui destreinada para sentir a matança de crianças indígenas. Sequer consigo imaginá-la, falta-me a foto do menino sem rosto afogado fugindo da guerra.
Vitor morreu porque era indígena. Sim, peço o porque aqui. O povo Kaingang já viveu em um pedaço de terra extensa, do Rio Grande do Sul a São Paulo; hoje sobrevive espremido, e o governo da vida anunciou que não passam de trinta mil pessoas. Era um povo grande, das maiores populações indígenas do Brasil. Por isso mesmo, foi vítima de diferentes momentos da exploração colonial e da política indigenista — conta a lenda colonizadora que até mesmo a pronúncia do nome tal como conhecemos foi cunhada por um de seus exploradores, um senhor colonial que prometia prosperidade e desenvolvimento. Acredito na lenda, pois Vitor foi morto pela exploração colonial no Brasil.
Não sei se o matador do bebê indígena sabia que a família era de Kaingang ou que o grupo migrava para comerciar sobrevivência. Só sei que o matador sabia quem seria sua vítima: um bebê frágil, precarizado pela pobreza, comendo qualquer coisa em uma rodoviária de cidade turística. O matador sabia que sua vítima teria um corpo e jeitos específicos, diferente dos bebês das elites urbanas. Se tivesse assassinado um bebê herdeiro do poder colonial, o matador já nos seria conhecido. Seu nome seria estampado, odiaríamos seu rosto lombrosiano, e a imagem do bebê nos machucaria a esperança de um novo ano. Estamos calmas, porque quem morreu foi um bebê indígena.
Se fosse um bebê de couro colonizador, com as formas da branquidade brasileira, não estaria migrando para sobreviver pela venda de penduricalhos no verão. Vitor morreu do jeito que há 500 anos se matam os povos indígenas no Brasil: pelas epidemias, pela desapropriação das terras, pela militarização das fronteiras, pela prostituição das mulheres ou pelo alcoolismo dos homens. A facada no pescoço foi só a literalidade do gesto opressor.
Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas.
Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.
Foto: Gabriel Felipe/RBS TV
Veículo: Portal Justificando
Data de publicação: 11.01.2016
Link original para o artigo: http://justificando.com/2016/01/11/o-bebe-indigena-morto/