Flavia Martin
Publicado originalmente em O Globo
Desde o ano passado, quando relatou ter recebido ameaças de morte virtuais por seu protagonismo nas audiências sobre aborto no Supremo Tribunal Federal (STF) — que a fizeram decidir sair do país e se mudar para os EUA, em setembro —, a antropóloga Debora Diniz , de 49 anos, da Universidade de Brasília (UnB) , evita aparições públicas.
Quebrou essa rotina em poucas ocasiões: uma quando participou de evento sobre a democracia brasileira na Univesidade Brown , também nos EUA, ao lado do ex-deputado Jean Wyllys e da filósofa Marcia Tiburi , em abril, quando chegaram a seu e-mail as últimas investidas do que chama de “milícias virtuais”.
Outra vez acontece agora, no seminário “Hospitalidade entre ética, política e estética”, em que 22 intelectuais discutirão as crises migratórias, na quinta e na sexta, na Casa de Rui Barbosa, em Botafogo, Zona Sul do Rio.
Debora debate com o público via Skype, após a exibição de seu documentário “Hotel Laide” (2017), no primeiro dia do evento. O filme mostra o cotidiano da Cracolândia da capital paulista a partir da pensão do título, que fazia parte do programa “De braços abertos”, de combate às drogas, do ex-prefeito Fernando Haddad (PT). O hotel foi destruído em um incêndio em 2017.
Nesta entrevista, ela comenta desde a nova Política Nacional de Drogas do governo Bolsonaro, passando pelo livro sobre aborto que lança neste ano pela Companhia das Letras, até o jeito que encontrou para fazer com que sua voz seja ouvida mesmo estando longe.
Descriminalização do aborto
Nunca houve clima para discutir aborto no Brasil. Claro que atualmente é uma questão usada como cortina de fumaça e moeda de troca, então não diria que temos que esperar. O momento é agora: há uma ação no STF ( que pede a descriminalização do procedimento até as 12 semanas de gestação ), e mulheres correm risco de vida todos os dias. Esperar pelo político é ignorar a necessidade da vida delas. Estou escrevendo um livro sobre aborto, amplo, que também tenta romper com alguns mitos. Tem um caráter de ciência, mas quero atingir um público de livraria que quer formar uma opinião sobre o tema, que pede “me forneça argumentos”.
Drogas: abstinência x redução de danos
É uma guinada moral, ideológica, e repressiva ( o foco maior na abstinência para tratar o dependente ). E não científica. Além disso, é de alto custo para o Estado. E leva a uma porta giratória de internações sequenciais que acabam colocando o indivíduo de volta para a rua. Por isso que a expressão “recaída” é tão forte nessa população. Não há a consideração de que o uso da droga é parte de uma sociabilidade que precisa ser ocupada por outros aspectos da vida, como o trabalho. A redução de danos faz uma inserção do indivíduo no mundo real, acessível a essas pessoas por um processo de reconstrução de uma vida possível. Há fortes evidências do passado de que isso ( internação ) não resolve. Também há uma estigmatização do indivíduo, que passa a ser julgado como alguém que não teve o arbítrio e a força de vontade pra abandonar a droga, e não é assim.
Internação involuntária de dependentes
Historicamente, a internação compulsória se mostrou terrível. No início do século XX, era a internação das mulheres dissidentes de um padrão de feminino e, depois, de mulheres que tinham uma sexualidade diferente… Num momento em que temos uma perseguição moral à diversidade, há um enorme risco de uma “psiquiatrização” de comportamentos desviantes e indesejáveis para uma moral familiar. Ou seja, isso abre espaço para uma arbitrariedade de violação de direitos individuais.
Comunidades terapêuticas religiosas
Estamos vendo um deslizamento da política pública de saúde mental da ciência para a segurança pública — no sentido de uma política penal, da repressão —, com a imposição de uma moral religiosa. Há uma pergunta de fundo de qual é a origem da droga, se é parte de uma dinâmica social e de saúde mental ou se é de uma maldição religiosa. É uma disputa de narrativas sobre o cuidado da saúde mental: ciência X religião.
Vida ‘de migração involuntária’
Vivo uma situação de exílio por razões políticas de perseguição. Então, num ordenamento internacional, seria uma refugiada. Mas toda a operação das milícias virtuais, de onde vêm as ameaças de morte, impõe uma pena de desterro, que é uma categoria constitucional grave, mas que somente o Estado poderia me impor. Não sou uma desterrada oficial pelo Estado — ao contrário, estou sob proteção do Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos. Mas, quando essa milícia opera aos interesses dessa ordem moral vigente, ela anima a pena de desterro e torna desnecessário que o Estado a imponha. Vivo uma situação de migração involuntária, forçada, para proteger a mim, aos alunos e à universidade. Vivo num limbo jurídico.
Falar para fora da ‘microbolha’
Não adoeci, e isso é uma vitória. Esse poder, eles não tiveram. E também não me silenciei. Só que tudo isso provocou uma mudança no jeito de me comunicar, inclusive para fora da minha microbolha, que era a universidade. Nunca tinha tido redes sociais, mas criei uma conta no Twitter ( em agosto de 2018 ), e passei a escrever mais em jornais e revistas ( ela é colunista da “Marie Claire” e do “El País” ). Passei a me redefinir inclusive sobre quem eu seria aos quase 50 anos. Não quero ser otimista, mas jamais vou abandonar a esperança na Humanidade e deixar de acreditar que eles são poucos e rapidamente estão desmoronando.