Não há como resolver a fissura da droga pela abstinência mágica, de Debora Diniz.
Publicado originalmente por HuffPost Brasil, em 23 de junho de 2016.
Em 2015, passei algumas semanas na Cracolândia de São Paulo. O nome é curioso, pois emprega o sufixo de cidades – seria isso mesmo, um território para as pessoas que se juntam porque usam crack. Ali viveriam os crackeiros e, segundo o mapa do Google, o epicentro da Cracolândia se chama Zumbilândia. São os zumbis ou os noiados, o povo da maior cracolândia da América Latina.
Nos dias que permaneci por ali, conheci Brenda, uma travesti da rua, agora governanta de um hotel social; conheci um português que veio para a Copa do Mundo e perdeu-se na vida. Há gente diferente, é verdade, mas as pessoas que formam a multidão são parecidas entre si: gente pobre sobrevivente de manicômio ou presídio, povo da rua há tempo largo.
Chamamos de cidade pelo jeito da palavra, mas ali falta tudo para ser uma cidade decente. Dorme-se no papelão que é feito de banheiro, no mesmo pedaço de chão que se ocupa para escambo de qualquer coisa. Tudo se troca por tudo na terra do crack. É ato de bravura atravessar o fluxo sem o “salve” dos irmãos; não fiz isso por conta própria, entrei, permaneci e saí em segurança. Ao meu lado estava uma agente social do Programa de Braços Abertos. Carmem é assistente social e se movimenta no fluxo com um imaginário capacete azul da ONU para territórios de conflito armado – anda pela calçada de trânsito livre, mas também pelo lado direito da calçada, aquela em que só gente autorizada ousa pôr o pé.
Com Carmem, entendi a Cracolândia de outro jeito. É o povo da rua, é gente sobrevivente da loucura ou do crime, mas é também gente jovem refugiada da vida. O lugar é o fim da linha do abandono. Sem o capacete azul da ONU, Carmem se veste com um colete reluzente, anuncia a presença antes de ser vista. Seu trabalho é recolher os mais adoecidos, é oferecer cama e banho para quem parece estar mais cansado da vida na rua que os outros. Foi com ela que conheci Angélica, a personagem do documentário que filmei na Cracolândia.
Angélica é mulher jovem, vive na rua há quase uma década, passou por reformatório na adolescência e por internação compulsória para tratamento de drogas. Fugiu da clausura médica, pois não acreditou nisso de purificar-se compulsoriamente das drogas. Carmem acredita noutra forma de reviver quem dorme no chão da Cracolândia – é preciso ir devagar, muito devagar, sem julgar com voz alta ou reprimir, mas devolvendo experiências básicas do cuidado para a vida. E nada de polícia, menos ainda de pancada.
Acompanhei Angélica saindo da rua, deixando o papelão para trás, escondendo o cachimbo, chegando à pensão de d. Laíde, apresentando-se a Brenda como uma moradora do hotel social, uma pensão que oferece teto, chuveiro e comida para aprender, aos poucos, a diminuir a pedra fumada a cada dia.
Não há como resolver a fissura da droga pela abstinência mágica, e não há como sequestrar alguém que é povo da rua para um manicômio. Essas foram experiências tentadas e fracassadas. É preciso encontrar jeitos e formas de fazer o crack desaparecer como redescoberta de um corpo novo. Um bom começo é oferecendo colchão no lugar de papelão, banho ao invés de água da chuva.
Carmem não é heroína e nem quer ser. Deseja se manter como alguém que veste colete com nome de prefeitura, atua em área de conflito e desconhece o medo. É prudente, mas não obedece ordem fora da lei; só não precisa de arma ou grito para impor-se. Não quer polícia ou homem bravo ao seu lado: faz-se presente pela palavra, garante promessa pelo acolhimento diário. É isso: se há algo de excepcional nos números apresentados pela recente pesquisa sobre a Cracolândia e o sucesso do Programa de Braços Abertos (65% das pessoas não voltam para o crack, dizem os pesquisadores), sugiro que conheçam Carmem, a assistente social que visita os refugiados para lhes dizer que outra vida é possível, e sem cadeia ou manicômio.