Gabriela Sá Pessoa
Publicado originalmente na Folha de SP
Depois de oito horas de viagem, Júlia (nome fictício), 32, desembarcou sozinha em São Paulo numa manhã de novembro, vinda do interior do Paraná, com pressa para resolver um problema que, diz, a angustiava havia dois meses.
Pegou o metrô até uma estação próxima ao Hospital Pérola Byington, no centro da capital. Sem avisar a ninguém, Júlia inventou uma desculpa no trabalho e viajou sem nem saber direito onde dormiria.
Tudo para conseguir atendimento médico obrigatório em todos os hospitais do SUS: interromper uma gestação decorrente de um estupro, uma das possibilidades legais para o aborto no Brasil. Também não é crime abortar em caso de risco de morte materna ou quando o feto é anencéfalo.
Outras 32 mulheres na mesma situação de Júlia precisaram deixar seus estados –do Pará ao Rio Grande do Sul– em 2017 em busca de atendimento no Pérola Byington, principal centro de referência no país em atendimento à violência sexual. Em média, 40% dos pacientes do hospital paulistano são de fora da capital.
O ginecologista André Luiz Malavasi, diretor do Pérola, vê a peregrinação de mulheres como “a ponta do iceberg” das falhas no atendimento a mulheres vítimas de estupro.
“O abortamento é o colapso da prevenção da violência, da assistência à saúde. Mostra que falhamos em todos os sentidos”, ele diz. “O atendimento às vítimas de violência sexual é de baixíssima complexidade. Qualquer serviço minimamente estruturado, mesmo que só com uma enfermeira treinada, consegue fazer.”
Segundo o Ministério da Saúde, há 85 hospitais cadastrados como referência para o serviço de aborto legal, que realizaram 1.590 procedimentos no país. Só o Pérola Byington fez 400 abortos, ou 25% do total do país.
A pasta não informou quais eram esses 85 hospitais. Como uma paciente pode recorrer ao serviço consegue essa informação? A lista desses locais é pública?, perguntou a reportagem. Resposta: “A mulher pode ser atendida em qualquer um dos estabelecimentos de saúde vinculados ao SUS que possuam serviços de obstetrícia”.
Vítimas de estupro, como Júlia, não precisam de boletim de ocorrência para ter direito a abortar. Para o SUS, basta a palavra da mulher, que é avaliada por equipe multidisciplinar, de médicos e psicólogos.
Isso porque nem sempre a vítima pode denunciar ou registrar a ocorrência sem riscos. Além disso, não raro o agressor é da família ou do círculo de convívio –como aconteceu com Mariana (nome fictício), 20, violentada por um amigo da família aos 18 anos.
Jamais contou o que aconteceu a ninguém: queria poupar a mãe e tinha medo do impacto em sua própria vida.
Mariana mora no interior do Paraná e também teve de recorrer ao Pérola Byington para abortar, com ajuda da Artemis, ONG especializada em violência contra a mulher.
Antes, tentou abortar sozinha. Comprou clandestinamente comprimidos abortivos. Nada funcionou. “Entrei numa crise de depressão, tentei me matar”, conta. A estudante não sabia que tinha direito ao aborto em hospital público? “Na minha cabeça sempre funcionou como um boato”, responde. “E essa visão de que a mulher ainda é colocada como errada fez com que eu não recorresse a ninguém. Ninguém quer divulgar [a lei], existe um sigilo muito forte.”
A falta de informação sobre como deve ser o atendimento é uma falha central dos serviços de aborto legal e atendimento à violência sexual.
Um inquérito em andamento no Ministério Público Federal constatou que “tem sido comum a negativa de atendimento a tais vítimas, no SUS, sob a alegação de que é necessário um boletim de ocorrência policial ou um exame de corpo de delito”.
Pesquisa do Anis – Instituto de Bioética, coordenado pela professora da UnB Débora Diniz, mostra realidade semelhante: em 2015, apenas 37 dos 68 serviços de referência para o aborto legal de fato funcionavam. Mesmo neles era recorrente a exigência de laudos médicos ou boletim de ocorrência.
É a mesma realidade identificada pela pesquisadora Vanessa Canabarro Dio. Ela trabalhou como psicóloga de um serviço de aborto legal e pesquisou o tema no livro “A Palavra da Mulher” (ed. Letras Livres). Dios conduziu 82 entrevistas com profissionais de saúde em cinco capitais e identificou uma série de entraves.
“A mulher ou menina precisará contar sua história a vários profissionais e não poderá haver discrepância entre as versões. Em alguns serviços vão ser necessários também apresentar boletim de ocorrência e/ou autorização judicial, preencher formulários e ser reconhecida pela equipe de saúde como uma mulher não mentirosa”, escreve.
Júlia foi violentada depois de um churrasco, ao dividir um carro em aplicativo de carona com dois homens. A designer lembra de estar sóbria ao entrar no veículo, mas a memória apagou tudo o que houve até ela acordar no seu apartamento e perceber que estava dolorida e que havia manchas de sangue pela casa.
Na Delegacia da Mulher de sua cidade, ouviu que só poderia ser atendida caso conseguissem identificar judicialmente os agressores. O limite para o aborto legal é de 22 semanas ou até o feto alcançar 500 gramas. “Quanto tempo ia demorar para provar [o autor]? Eu ia fazer o que da vida até lá?”, diz Júlia. “Em nenhum momento foi falado do meu direito. Não tive nenhuma atenção ou afeto “, relata.
O Ministério da Saúde afirma que a responsabilidade pelo atendimento ao aborto legal não é exclusivamente sua, mas compartilhada entre União, estados e municípios, e que cabe aos serviços de saúde locais elaborar normas.
A Secretaria de Saúde do Paraná, estado de Júlia e Mariana, afirma que há quatro hospitais de referência no estado, mas desconhece o número de abortos legais realizados. Também diz que não há registros de encaminhamentos ao Pérola Byington em seus sistemas. As secretarias de MG, SC, RS e PA disseram que seus serviços funcionam regularmente e que as mulheres foram a outro estado por conta própria.
ENTENDA O ABORTO LEGAL
Quais são as situações em que é permitido abortar legalmente?
Em três situações: gestações decorrentes de estupro, que causem risco à vida da mulher ou de feto anencéfalo. Segundo a ONG Anis, a Justiça tem estendido a permissão para anencefalia a outros casos de incompatibilidade com a vida.
Pode haver aborto legal sem o consentimento da mulher?
Não, apenas se a continuidade da gravidez oferecer risco de vida e a mulher não puder manifestar consentimento.
É necessário comprovar o estupro para ter acesso ao aborto?
Não. Todos os hospitais do SUS e da rede privada devem oferecer o serviço. Apenas a palavra da mulher, avaliada por uma equipe de médicos e psicólogos, basta. Não é necessário apresentar boletim de ocorrência, exame do IML ou autorização judicial. Caso o serviço de saúde não ofereça o atendimento, a mulher deve ser encaminhada pelo gestor de saúde a um hospital habilitado.
Em caso de feto anencéfalo, é necessária autorização judicial para o aborto?
Não, o procedimento pode ocorrer independentemente de autorização. É necessário apresentação de exame específico que comprove a má formação e laudo assinado por dois médicos.
Um médico pode se recusar a fazer um aborto legal?
Norma do Ministério da Saúde e o Código de Ética Médica garantem ao profissional o direito de recusar o procedimento. Entretanto, isso só pode acontecer se não houver risco à mulher e se houver outro médico disponível para fazer o procedimento.