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Anis | Médicos não são a polícia do aborto

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Médicos não são a polícia do aborto

3 de março, 2017

Delatar aborto clandestino é infração grave para códigos Penal, Civil e de Ética Médica

por Gabriela Rondon

Publicado originalmente no Jota

 

Infelizmente, a cena não é incomum para mulheres que abortam na clandestinidade. Há duas semanas, uma mulher de 26 anos, enfrentando as dores de um aborto, chegou à emergência do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba, buscando por socorro.

O que encontrou foi diferente do cuidado que seu sofrimento exigia: do hospital foi direto à cadeia local. Também como em outros casos semelhantes, indícios noticiados sugerem que seu delator foi justamente a quem ela confiou sua vida e seu corpo: o médico que a atendeu.

O Código Penal, o Código Civil e o Código de Ética Médica são claros em identificar o que aconteceu como uma grave infração.

O Código Penal estipula pena de detenção de três meses a um ano para quem revele segredo ao qual tenha tido acesso em razão de profissão, e cuja revelação possa provocar dano a outrem – como é o caso de informação de saúde conhecida por médico que possa levar a uma persecução penal.

Já o Código Civil estabelece, em seu artigo 144, que ninguém pode ser obrigado a depor sobre fato a cujo respeito deva guardar segredo por razão de profissão, desconstituindo a compreensão errônea de que a suspeita de um crime deve levar médico a ocupar função de delator.

O Código de Ética Médica também veda aos médicos a revelação de dados de que tenham conhecimento em razão do exercício da profissão, salvo exceções legais – que incluem a notificação obrigatória de doenças para vigilância epidemiológica, por exemplo, bastante distantes do caso de uma mulher em sofrimento pós-aborto. Como se não fosse suficiente, as regras da profissão são especialmente claras em estipular que o médico é impedido de revelar segredo que possa expor paciente a processo penal.

Mais crucial ainda que as regras da medicina ou da lei civil ou penal, o respeito ao sigilo é dever constitucional dos médicos: a confidencialidade de informações de saúde é garantia essencial de proteção à intimidade e à vida privada das pessoas e, de maneira ainda mais sensível, é condição de possibilidade do exercício do direito à saúde, livre do risco de sofrer estigma ou discriminação.

Mas se as normas são tão claras, seja em âmbito profissional, legal, ou constitucional, por que histórias como a denúncia de Curitiba seguem se repetindo para mulheres em complicações pós-aborto, inclusive com insistência dos profissionais de que agem “conforme a lei”?

É o estigma do aborto, reforçado pelo Estado na forma da lei penal, que permite a subversão do sentido do justo mesmo em situações em que o dever do cuidado é literal. O estigma institucionalizado na criminalização do aborto dá corpo ao abuso do poder médico que atenta contra a vida das mulheres com ainda mais força por pretender se confundir com a legalidade.

Enquanto decisões reprodutivas forem consideradas matéria de lei penal e não necessidades de saúde, e enquanto não se falar sobre gênero nas faculdades de medicina, mulheres seguirão sendo quem têm os direitos mais óbvios de cuidado à saúde negados. Seguiremos sendo cidadãs de segunda classe, até mesmo dentro dos consultórios.

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