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Mais racionalidade na discussão sobre aborto

11 de dezembro, 2017

por José Gomes Temporão

Publicado originalmente na Época

Por que as brasileiras têm de ser privadas de intervenções médicas seguras?

No dia 27 de novembro, a Academia Nacional de Medicina (ANM) enviou uma carta aberta para a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), em que defende a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. A ANM, cuja fundação em 1829 antecede à do STF em mais de 60 anos, sempre contribuiu para balizar o debate sobre saúde com base em evidências. A prática do aborto é bem mais antiga que a Academia e o STF e, pelo menos, desde a Antiguidade está entre as opções que as mulheres têm para controlar sua reprodução. A interrupção voluntária da gravidez sempre foi praticada e não diminui só porque uma parte da população a desaprova.

Fazer de conta que o aborto, por ser ilegal, deixa de ocorrer é condenar 500 mil mulheres brasileiras todos os anos aos riscos de um procedimento clandestino. É preciso encarar o tema com racionalidade e a perspectiva da saúde nos dá instrumentos para isso. Temos as evidências científicas necessárias para desenvolver políticas públicas que podem salvar vidas e reduzir sequelas evitáveis.

Hoje, há diversos métodos seguros, recomendados pela Organização Mundial da Saúde, para a interrupção voluntária da gravidez. Quando usados com o apoio especializado, reduzem as consequências adversas para as mulheres e os índices de mortalidade materna. No Brasil, ele atinge taxas incompatíveis com nosso grau de desenvolvimento. Todos os anos, temos mais de 200 mil internações no SUS por complicações relacionadas a aborto. Por que as brasileiras têm de ser privadas de intervenções médicas seguras que estão disponíveis para as francesas, canadenses, sul-africanas, indianas e para mulheres em dezenas de outros países?

Há quem diga que proibir o aborto salva vidas, mas essa afirmação não encontra nenhum amparo na literatura científica. Ao contrário, quando o aborto é ilegal ele acaba ocorrendo de forma arriscada e é mais frequente. Um estudo publicado no periódico britânico The Lancet em 2016 comprovou que em países onde o aborto foi legalizado houve uma queda tanto no número de procedimentos quanto no de mortes maternas. Esse fenômeno também foi bem documentado em países como Portugal e Uruguai, que não apenas legalizaram a interrupção voluntária da gravidez, mas ampliaram a oferta de serviços de saúde reprodutiva.

O Brasil já possui uma das legislações de aborto mais restritivas do mundo. É necessário ampliar os casos em que uma mulher pode ter acesso a métodos seguros de interrupção da gravidez, não restringi-los. Iniciativas como a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 181, além de contrárias ao que demonstram as evidências científicas, estimulam um debate baseado em opiniões e não em fatos.

A posição da ANM nesse tema é amplamente partilhada entre as organizações profissionais do campo da saúde. A Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco),  a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) e o Conselho Federal de Psicologia, além de outras 18 organizações, já protocolaram documentos no STF apoiando uma ação em curso em prol da descriminalização do aborto no Brasil.

Rebeca Mendes, a mulher que recentemente pediu ao STF o direito de interromper sua gravidez de maneira segura, é apenas a mais visível entre as centenas de milhares de brasileiras que enfrentaram sozinhas os riscos de um aborto ilegal neste ano. É chegada a hora de deixarmos as impressões subjetivas de lado para avançarmos em um debate com base em dados e na experiência documentada ao redor do mundo.

 

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