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A França se tornou nesta segunda-feira (4) o primeiro país do mundo a incluir na Constituição a liberdade da mulher de abortar. A mudança na Carta Magna foi aprovada em uma sessão conjunta das duas Casas legislativas, a Assembleia Nacional e o Senado, e deve ser promulgada pelo presidente, Emmanuel Macron, na próxima sexta (8) —Dia Internacional da Mulher.
Assim como a votação, também o placar foi histórico. O texto recebeu 780 votos a favor, ante apenas 72 contra.
Minutos após o anúncio, Macron celebrou a decisão nas redes sociais. Ele a descreveu como mais um “orgulho francês” e chamou a população a comparecer a um ato no 8 de março.
Incluir a interrupção da gravidez na Constituição era uma prioridade legislativa do governo Macron, que movimentou sua base no Parlamento como resposta a uma decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos que revogou o direito ao aborto em nível federal no país em junho de 2022.
O aborto é descriminalizado na França desde 1975, quando foi aprovada a lei Simone Veil, batizada com o nome da ministra da Saúde de centro-direita que propôs o texto. A legislação permite que as mulheres se submetam ao procedimento até a 14ª semana de gestação, mas a prática não tinha proteção constitucional, o que a colocava sob risco de ser derrubada pela Justiça, como temiam apoiadores do projeto.
“A lei de 1975 continua em vigor, mas agora o aborto está inscrito no texto constitucional, especificamente na previsão dos direitos fundamentais”, diz Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora do Anis Instituo de Bioética. “O que muda é o status da proteção. Por isso foi uma votação histórica, o primeiro país do mundo a colocar o aborto na Constituição. É uma mensagem global da importância de se proteger a liberdade reprodutiva das mulheres.”
Antes da França, lembra Rondon, o Chile havia proposto recentemente incluir o procedimento na Carta Magna —mas o texto foi rejeitado pelos chilenos no referendo de setembro de 2022, em uma derrota para o presidente Gabriel Boric. O aborto segue proibido no país, exceto em casos de estupro, risco de vida para a mãe ou quando o feto não pode sobreviver fora do útero.
A aprovação da mudança constitucional na França foi comemorada por entidades feministas. “Foi um longo trabalho da sociedade civil até a aprovação da nova lei, e estamos muito satisfeitas”, diz Noemie Gardais, porta-voz da Le Planning Familial, uma das mais antigas organizações a favor do aborto no país. “Foi o texto possível de atingir através da negociação e da conciliação, assim como a lei Veil de 1975”, afirma.
Isso porque organizações feministas e parlamentares mais à esquerda pressionaram o governo para que a nova lei fizesse menção explícita ao “direito ao aborto”, e não apenas à “liberdade da mulher de abortar”, como ficou no texto final. Ainda assim, a Planning Familial considera a mudança um grande avanço.
“É um enorme sinal para feministas no mundo tudo, na Hungria, na Polônia, na Argentina [onde o governo Milei ameaça reverter a liberação do aborto]. Agora, mesmo que a ultradireita chegue ao poder na França, há mais um nível de proteção, e a ameaça é menor”, diz Gardais.
Ainda assim, o apoio ao aborto é praticamente um consenso no país —a nova lei tinha o aval de 86% dos franceses, de acordo com uma pesquisa do instituto Ifop de 2022, foi aprovada com ampla maioria nas duas Casas e contou inclusive com o voto da líder da oposição, Marine Le Pen.
Uma série de fatores explica esse consenso —o principal deles, a relação dos franceses com a fé. “Por motivos históricos, a França é um país onde a religião não é importante na política”, diz Thomas de Barros, doutor em teoria política pela universidade Sciences Po, em Paris. “Faz parte da cultura francesa a ideia de que o cidadão deve ser protegido de ter uma religião imposta a ele. A própria ideia do que é ser republicano está ligada à separação entre Igreja e Estado.”
Como em outros países europeus, a quantidade de pessoas religiosas vem caindo na França. Dados do Insee, instituto equivalente ao IBGE no país, mostram que 51% da população francesa não têm religião, enquanto 29% professam o catolicismo, 10%, o islamismo, e 9%, outras religiões.
Também há o fato de que o aborto é legalizado no país há quase 50 anos, uma mudança proposta por uma ministra da saúde de centro-direita e aprovada com negociações no Parlamento. “O maior desafio foi convencer a direita, mas como a lei veio de uma política desse campo, muitas críticas na época acabaram desarmadas”, diz Barros.
O que não significa dizer que não existam oponentes —o movimento Marcha pela Vida, por exemplo, organizou um protesto silencioso em Paris na última terça (27), quando a mudança na Constituição foi aprovada no Senado. Marie-Lys Pellissier, membro da organização antiaborto, diz que, com a aprovação da lei, o governo Macron “faz pouco caso dos direitos humanos, da liberdade de consciência e da Constituição, que não foi feita para resguardar liberdades pseudo-individuais”.
Barros diz que “algumas pessoas poderiam dizer que Macron faz isso agora para conquistar a esquerda”, lembrando que o presidente francês teve uma série de embates recentes com o campo ideológico, como na reforma da Previdência e na aprovação de leis mais rígidas contra a imigração. “Mas aprofundar a igualdade entre mulheres e homens já era uma prioridade desse segundo mandato de Macron, e é um processo que começou no fim de 2022. Então isso acaba escapando dos debates de curto prazo.”
O estopim para a aprovação da nova lei no país foi a derrubada, depois de 50 anos, do direito ao aborto em nível federal nos EUA. A introdução da nova lei cita explicitamente a revogação do direito à interrupção da gravidez pela Suprema Corte americana em junho de 2022, que derrubou uma decisão de 1973 conhecida popularmente como Roe v. Wade.
No Brasil, o aborto é ilegal, exceto em casos de estupro, quando há risco à vida da mãe, ou quando há anencefalia do feto.