por Luciana Brito
Publicado originalmente em HUFFPOST BRASIL
Figueiredo Pimentel é autor brasileiro pouco conhecido. O Aborto foi um romance escrito em 1889 em formato de folhetins para um jornal de Niterói intitulado Província do Rio. O título original era O artigo 200 – assim mesmo com, o “o” definido – e remetia ao Código Criminal do Império do Brasil de 1830. O artigo 200 da Lei advertia que “fornecer com conhecimento de causa drogas ou quaisquer meios para produzir o aborto, ainda que não se verifique” teria pena de prisão de dois a seis anos. O código criminal datado há quase duzentos anos não se distancia muito do que está em vigor em nosso atual século 21 – que prevê cadeia para mulheres e profissionais de saúde pela prática do aborto no Brasil.
Pimentel conta a história de Maricota, menina-moça saída do interior para morar com a família na Província do Rio. A menina é descrita como moça bonita, de coxas grossas, alta, com “formas desenvolvidas e cheia de corpo”. A menina extrovertida e alegre se afastava do modelo de mocinha bela, recatada e do lar que permeia imaginários sobre como seria a boa adolescente do século XIX vinda do interior. Maricota se enamora do primo boticário que num ato violento desvirgina a prima apaixonada. O estupro da primeira vez não atrapalhou o romance, pois Maricota acreditava que a violência do primo que lhe deixara doída e sangrando era porque lhe faltava “aprender os modos de fazer”.
Após a morte prematura da mãe a família se vê diante da falência por gastos excessivos para manutenção do armazém mantido para sustento. O pai, vivendo em um luto e tomado pela loucura e melancolia, deixa de se importar com a vida e a filha. Maricota percebe que para sobreviver em uma sociedade com poucas chances às mulheres pelo trabalho ou estudo, a ascensão teria que vir pelo casamento. Decide então se tornar amante de um advogado rico no qual ela apelida de Bode Velho.
O plano de Maricota começou a dar certo. Prometeu companhia e prazeres ao Bode Velho até sua esposa já idosa falecer para se casarem, e em troca ele lhe daria casa luxuosa, roupas e vida de conforto. Maricota sentia nojo ao se imaginar repartindo a cama com o homem que lhe dava o sustento, mas não sabia até quando conseguiria fugir às intenções do homem.
Os planos de uma vida em ascensão ruíram quando Maricota engravida do primo boticário e num ato desesperado pede ajuda do amante para realizar o aborto, pois as regras já estavam há quase três meses atrasadas. Maricota nunca havia se deitado com Bode Velho, ele ainda imaginava a menina-moça virgem. O primo lhe prepara garrafada – Maricota toma todo o líquido imaginando que remédio caseiro daria fim à gravidez indesejada. A cena do aborto contada no livro é intensa e curta. Três páginas revelam o desespero de Maricota ao descobrir-se grávida, o asco ao tomar a bebida desconhecida e a morte da jovem moça após tanto sangrar.
O folhetim foi escândalo na época, os capítulos finais tiveram publicação suspensa, mas após a recuperação dos originais conta-se que o livro foi sucesso de vendas. Dizem ainda que não era ficção, mas história verdadeira – houve uma Maricota morta. Se há dois séculos o aborto era fenômeno comum na vida privada de mulheres, hoje não é diferente: pelo menos uma em cada cinco mulheres no Brasil com mais de quarenta anos já fez aborto. Só em 2015 foram 500 mil mulheres em todo o Brasil. E diferente daqueles que imaginam que seria uma mulher típica a fazer um aborto – meninas inconsequentes ou devassas -, a mulher que aborta é a mulher comum. Ou seja, mulheres com filhos, casadas e que professam alguma religião. Certamente todos nós conhecemos alguma mulher que já fez aborto.
Se a literatura tem a potência de nos aproximar por aquilo que nos provoca eticamente e politicamente, as vidas vividas também deveriam nos mobilizar pelo reconhecimento. Precisamos discutir o aborto como um tema de saúde pública. Falar de aborto é falar da vida de mulheres.