por Andréa Martinelli
Publicado originalmente no HuffPost Brasil
Seu nome é Rebeca Mendes da Silva Leite. Aos 30 anos, mãe solo de dois filhos, recebendo salário de R$ 1.250 — de um contrato temporário de trabalho –, pagando aluguel de R$ 600 e estudando direito com bolsa de estudo pelo ProUni; Rebeca está grávida de 6 semanas e decidiu que quer fazer um aborto.
Em meio a um cenário de retrocesso, em que 18 deputados decidiram que criminalizar o aborto até em caso de estupro pode ser uma realidade no Brasil, Rebeca recorreu, na madrugada da última quinta-feira (23), ao Supremo Tribunal Federal (STF). Ela quer o direito de interromper a gravidez sem o risco de ser investigada ou punida criminalmente pela Justiça.
A estudante teve respaldo do PSOL e da Anis – Instituto de Bioética para apresentar o pedido ao Supremo. No documento, tanto o partido, quanto a ONG, pedem que a ministra Rosa Weber, relatora do processo, conceda uma decisão em caráter de urgência em favor de Rebeca e de “todas as mulheres o direito constitucional de interromper a gestação, e dos profissionais de saúde de realizar o procedimento”.
As entidades também justificam o pedido afirmando que uma ação comum na Justiça poderia demorar, ultrapassando o período inicial da gravidez em que é mais seguro fazer o aborto. Para reforçar, ainda cita o exemplo de um habeas corpus que chegou ao STF em 2003, mas que perdeu o objeto porque o julgamento ocorreu após o nascimento da criança.
Um dos argumentos do documento diz que:
A cada nova semana de espera, quase 10 mil novas mulheres enfrentarão o mesmo dilema trágico e Rebeca terá sua saúde deteriorada e menores chances de um procedimento seguro, necessário à sua vida e à de sua família. Pela proteção à saúde física e mental de Rebeca e milhares de outras com histórias semelhantes, é que esta medida liminar faz-se urgente e suplica-se a decisão desta Corte.
O pedido ainda traz detalhes da situação de saúde física e psíquica de Rebeca, e anexou laudos psiquiátricos apontando “intenso desconforto físico e psicológico” devido à “a impossibilidade de prosseguir com sua decisão de forma segura e legal, com acesso aos devidos cuidados em saúde”.
A estudante fazia uso de contraceptivo injetável a cada três meses, mas após seis anos de uso, “ganhou peso e desenvolveu mal-estar circulatório”. Assim, em setembro, procurou o serviço público de saúde para buscar alternativas.
No Sistema Único de Saúde (SUS), ela disse que gostaria de usar um dispositivo intrauterino (DIU) de cobre, mas foi encaminhada para exame de ultrassonografia. Por causa do período menstrual, não pôde fazer o exame, remarcado para dezembro deste ano. Nesse intervalo, teve uma única relação sexual com o ex-marido e engravidou.
A ação ainda destaca que Vanderlei Silva Júnior, seu ex-marido, tem a mesma opinião e considera que interromper a gestação é o melhor para o bem-estar familiar e projeto de vida dos dois, assim como dos filhos do casal. É destacado também que Rebeca não quer violar a lei ou arriscar a vida num aborto clandestino.
O documento ainda afirma que “Rebeca é uma jovem mãe que sonha em alcançar o diploma de ensino superior a fim de oferecer maior bem-estar a sua família” e que “a maternidade lhe é uma experiência gratificante e intensa, e exatamente por vivê-la com tanta responsabilidade e amor é que está segura em não ter condições de ter um terceiro filho”.
As limitações são existenciais e financeiras: por saber o que é a boa maternidade, Rebeca não poderia ter mais um filho, além de saber que os recursos financeiros da família não são suficientes.
Além do pedido apresentado ao STF, Rebeca escreveu um desabafo para a ministra Rosa Weber, relatora da ação. Publicada pelo coletivo feminista Think Olga, Rebeca afirma na carta que “sentiu um grande abismo se abrindo e sugando ela cada vez mais para baixo” quando descobriu a gestação.
Em seu texto, a estudante sustenta não ter condições econômicas e emocionais de levar a gestação adiante e reforça que é responsável pela criação de dois filhos e vive com recursos de um trabalho temporário que vai até fevereiro. Ela inicia a carta dizendo:
Antes de me julgar, Ministra Rosa Weber, peço que me escute, pois não é fácil, mas tentarei descrever o motivo do meu atual sofrimento.
E continua:
“Na terça-feira, dia 14/11, eu descobri que estou grávida. Minha menstruação, até então, estava atrasada apenas 10 dias. O que isso significa pra mim naquele momento? Bom, senti um grande abismo se abrindo e me sugando cada vez mais para baixo. Desde então, eu já não sei o que significa dormir, comer, estudar, enfim, tudo o que faço. Tranquilamente e quando não estou fazendo ‘nada’, eu estou chorando”.
Na carta, ela deixa claro quais são os motivos que a levaram a escolher pelo aborto: ser mãe de dois meninos, estar desempregada e ser aluna bolsista pelo ProUni.
Se já é difícil para uma mulher com filhos pequenos trabalhar em nosso país, é impossível uma mulher grávida conseguir um trabalho para qualquer atividade que seja.
“Seremos três pessoas passando necessidades, não conseguindo pagar meu aluguel sem ter dinheiro para comprar comida e com toda essa dificuldade ainda terei um bebê a caminho. Esse é um cenário que a longo prazo não tenho perspectiva de melhora.”
Rebeca ainda conta que fica imaginando as possibilidades a longo prazo e que se “estivesse vivendo outra realidade, o mínimo diferente que fosse, eu não estaria escolhendo fazer um aborto”. Ela ainda diz que é mãe de “dois meninos lindos e mesmo o pai pagando a pensão alimentícia para os meninos e morando muito perto de nós, ainda assim, me considero uma mãe que também faz o papel de pai”.
Ela completa: “O lema dessa pessoa que se considera pai dos mais filhos é: “eu já pago pensão”. Isso é o que eu escuto basicamente, em qualquer situação, desde chegar da faculdade às 23 horas e perceber que um deles está com febre alta e ligar e pedir que nos leve até o hospital, pois ele tem carro e eu não, e a resposta que eu tenho é: “Eu não pago pensão? Chama o Uber e leva você”. Dentre outros absurdos que não vem ao caso.”
Ao final, ela afirma que “poderia ter ido até a Praça da Sé com R$ 700,00 reais e comprar o tal do ‘Citotec’ e ter tomado na minha casa e acabado com tudo isso”. Mas que, diante da possibilidade, pesquisou e soube das consequências do aborto inseguro. “Eu nunca estive nessa posição e os relatos que vi foram mais que suficientes para descartar essa possibilidade”, afirma.
O medo do procedimento não funcionar e acarretar má-formação ou o remédio causar uma hemorragia causando a minha morte e, ser levada para um hospital e chegando lá ser levada para delegacia. Não quero ser presa e muito menos morrer. Não parece ser justo comigo. Não estou grávida de 4 ou 5 meses, estou grávida de dias apenas.
Você pode ler a carta completa clicando aqui.
O pedido de Rebeca chega em meio à discussão sobre aborto no Brasil. Uma comissão especial da Câmara dos Deputados, em uma votação com 18 homens e que inicialmente tratava apenas licença-maternidade em casos de bebês prematuros aprovou, no início de novembro, a chamada PEC “Cavalo de Troia”. A Proposta de Emenda a Constituição 181/2011 determina que “a vida começa desde a concepção”, a fim de barrar a descriminalização do aborto no Brasil em todos os casos.
O relatório altera o artigo 7º da Constituição, para que a licença-maternidade se estenda, além dos 120 dias, ao tempo em que um recém-nascido prematuro fique internado, contanto que o benefício não passe de 240 dias.
Além desse artigo, contudo, o relator, deputado Tadeu Mudalen (DEM-SP) sugere outras duas alterações constitucionais. O artigo 1º, que trata dos fundamentos do Estado, passa a ter a expressão “desde a concepção” quando trata da “dignidade da pessoa humana”. O mesmo termo foi incluído no artigo 5º, que passa a garantir “a inviolabilidade do direito à vida desde a concepção”.
Por usar o projeto sobre licença-maternidade para tratar de aborto, a PEC foi apelidada por movimentos sociais de “Cavalo de Troia”. Caso a PEC seja aprovada pelo Congresso e promulgada, ela não altera automaticamente as previsões legais do aborto, mas abre caminho para que isso aconteça.
Atualmente, além dos casos previstos no Código Penal, que dizem respeito a casos de estupro e mortalidade materna a interrupção da gravidez no Brasil é permitida também para fetos anencéfalos, conforme decisão do Supremo de 2012.
Caso o projeto avance no Congresso, o Brasil pode fazer parte dos únicos cinco países do mundo que proíbem a interrupção da gravidez em qualquer caso: El Salvador, Malta, República Dominicana, Nicarágua e Vaticano.
Até pouco tempo, o Chile também integrava essa lista, mas, recentemente, despenalizou o aborto em três situações (risco de vida para a gestante, inviabilidade fetal e estupro). Segundo um relatório do UNFPA (United Nations Population Fund), de 2013, dentre os cinco, apenas Nicarágua e República Dominicana tiveram leis que autorizavam o aborto e, depois, voltaram atrás. O Brasil pode ser um deles.
A tentativa de cercear qualquer discussão sobre aborto no Brasil ignora os números e dados que comprovam uma questão alarmante: uma em cada cinco mulheres até 40 anos já fez, pelo menos, um aborto no Brasil, segundo estimativa da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA).
Muitas precisam recorrer ao abortamento ilegal e estima-se que um milhão de procedimentos, em geral inseguros, são realizados por ano no Brasil, de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde (OMS). A cada dois dias uma mulher morre por complicações decorrentes do aborto ilegal no País.
Em março, o PSOL, com assessoria da Anis – Instituto de Bioética protocolou uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) no STF, em que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. O pedido ainda não foi julgado e não tem previsão de entrar em pauta. É a este mesmo pedido que foi anexado o pedido de liminar que cita o caso de Rebeca.
Desde março, segundo o PSOL, cerca de 330 mil mulheres brasileiros já fizeram aborto. “A vida e a saúde dessas centenas de milhares de mulheres foram colocadas em risco pela criminalização de sua decisão reprodutiva”, argumenta o partido com base um estudo financiado pelo Ministério da Saúde.
“Vivemos em uma década em que houve uma maior criminalização do aborto, somadas à redução dos números de aborto legal, casos de mulheres mortas em decorrência de um aborto inseguro, mulheres denunciadas à polícia por procurar o sistema de saúde”, afirma Debora Diniz, antropóloga e coordenadora da PNA.