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Publicado originalmente no HuffPost Brasil
“Vinha gente na minha casa que eu não conhecia só para olhar ela. Diziam que a cabeça dela era pequenininha. Já falaram que ela tinha a cabeça tão pequenininha que parecia um etzinho.”
O relato é de Edineide de Oliveira, de 23 anos, mãe de Maria Olivia, de 1 ano e cinco meses, mas poderia ser de dezenas de outras mães de crianças com síndrome congênita do zika em Alagoas. São 185 casos no estado desde a epidemia do vírus, em 2015.
“Encontrei mães que mudaram de endereço porque não suportaram a pressão social em cima delas”, conta a pediatra do Hospital Escola Hélvio Auto (HEHA), em Maceió, Auriene Oliveira. Muitas vezes o preconceito começa dentro de casa, na família.
Para Gilza Santos da Silva, fundadora da Associação Família dos Anjos de Alagoas, foi no ônibus a cena que mais marcou. Como de costume, ela subiu pela porta do meio porque é difícil passar pela roleta da frente com a filha de um ano e meio no colo. Ela se sentou para pegar a passagem porque Giulia sente espasmos. “Se eu ficar com ela em pé muito tempo no balanço do ônibus, ela assusta e é capaz de eu cair, como já quase aconteceu.”
O cobrador, contudo, começou a gritar para que Gilza pagasse a passagem. “Todo mundo parou. Teve gente atrás que se levantou e ficou olhando para mim. Me senti muito mal porque parecia que eu estava roubando”, lembra.
Ela conta que ao pedir calma e dizer que a filha era deficiente, o cobrador respondeu: “Eu não tenho a ver com isso”. “Eu só chorava. São essas coisas que a gente passa diariamente e são muito difíceis”, desabafa.
Os episódios de preconceito se somam à rotina extenuante dessas mães, em função dos filhos com deficiência. Seja no esforço para levar as crianças para consultas, exames e tratamentos, superar burocracias ou segurar os bebês de quase 2 anos no braço durante o dia todo, a dedicação é evidente.
“O que move a gente na verdade são eles porque eu sou tudo para ela. Sou o braço, a perna, a voz dela. Sou tudo. Então eu não vou parar de lutar nem de enfrentar qualquer obstáculo nem qualquer preconceito”, resume Gilza.
O cuidado impressiona a pediatra que acompanha famílias acometidas pelo zika.
Uma coisa que eu falo quando as pessoas me perguntam do dia a dia com o paciente é o amor que essas mães têm. Isso é incondicional, com todas as dificuldades. Dificuldades de acesso a vir para estimulação, a vir para a consulta.
Auriene Oliveira conta que no começo algumas mães sofrem em aceitar a deficiência, mas ao longo do tempo se juntam em grupos e trocam experiência. “São muito comprometidas. A grande maioria sabe horário de medicação, se a medicação precisa de ajuste”, conta.
Parte do trabalho é conversar com essas mães, explicar como cuidar dos filhos, especialmente nas crises de convulsão. Outra função determinante é destacar a importância do tratamento. A estimulação é feita até os 3 anos, fase crucial para o desenvolvimento infantil.
O zika vírus tem afinidade por células do sistema nervoso central. Os sinais dependem da área do cérebro afetada e do tipo de lesão. Além disso, fetos cujas mães foram infectadas no primeiro trimestre de gravidez tendem a ter sequelas mais graves, pois este é o período de formação do sistema nervoso.
Algumas características das crianças acometidas pelo vírus são o chamado polegar empalmado (dedo virado para a palma da mão), postura fetal, hipertonicidade (pernas e braços rígidos), deficiências auditivas e oftalmológicas e de deglutição, entre outras.
Na estimulação com fisioterapeuta, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional, a criança aprende a fazer novas ligações neurais para conseguir se desenvolver até 3 anos. “É um período que essa criança tem uma maior possibilidade de fazer conexões nervosas e desenvolver, através da neuroplasticidade, aquele neurônio que estava comprometido. Vai desenvolver estratégias motoras e neurológicas para compensar aquilo que ele perdeu”, explica Wallacy Araújo, fisioterapeuta da Associação Pestalozzi de Maceió.
Quando o acesso ao serviço é tardio, a criança já passou por essa etapa, e o comprometimento é maior. “A criança que recebeu o atendimento mais precoce conseguiu remodelar o cérebro, por meio da neuroplasticidade e desses estímulos, por isso ela é mais espertinha e consegue realizar as atividades dela”, explica o fisioterapeuta.
A faixa etária de atendimento está prevista no Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia do Ministério da Saúde, lançado em dezembro de 2015, que define a estimulação como “programa de acompanhamento e intervenção clínico-terapêutica multiprofissional com bebês de alto risco e crianças pequenas” acometidas por patologias como a microcefalia, a fim de buscar a “mitigação de sequelas do desenvolvimento neuropsicomotor” e efeitos na linguagem, socialização da criança e vínculo familiar.
Na Pestalozzi de Maceió, são 20 crianças atendidas duas vezes por semana. Os pacientes chegam aos centros de reabilitação por meio da Secretaria de Saúde municipal, após o exame de tomografia que confirma a deficiência. Os casos descartados, portanto, ficam de fora do tratamento.
No centro de atendimento, é feita uma avaliação com uma equipe multidisciplinar. Junto com a família, é desenvolvido o projeto terapêutico singular de cada paciente, uma espécie de plano de metas, que é reavaliado todo semestre.
A família participa das sessões no centro e é coterapeuta em casa. “A gente começa com a sensibilização na espera mostrando a importância de chegar no horário, participar da terapia, compreender como os terapeutas estão orientando e as mães são inseridas dentro do atendimento durante as terapias”, conta Patricia Amorim, assistente social do Centro Especializado em Reabilitação 4 da Pestalozzi de Maceió.
Nas sessões, os pais são orientados a desenvolver atividades simples, como virar o bebê de uma lado para o outro durante o banho ou usar uma lanterna na hora de trocar a fralda, a fim de estimular a percepção visual. Os profissionais ensinam também a usar materiais simples, como papelão, feijão ou garrafa PET nas atividades do cotidiano. “É brincar com seu filho. Não é fazer terapia”, afirma Wallacy Araújo.
Na Pestalozzi, a oficina ortopédica concede órtese e prótese pelo SUS e faz fabricação e manutenção de órteses. A prótese é implantada no corpo para suprir a falta de um órgão ou para restaurar uma função comprometida. Já a órtese é um aparelho externo para imobilizar ou auxiliar os movimentos dos membros ou da coluna vertebral, como uma palmilha ortopédica, coletes ou munhequeiras. No início de setembro, as famílias recebam “banhitas”, um tipo de banheira adaptada para crianças deficientes. Elas aguardavam ainda cadeiras de rodas.
A atividade do dia depende de duas coisas: dos objetivos traçados para aquela criança e de como ela está no dia. “Se vier uma criança com febre, muita secreção, a gente não vai fazer nenhum exercício. O fisioterapeuta vai fazer a terapia respiratória naquele dia”, explica Wallacy Araújo. Quando as crianças estão congestionadas, por exemplo, são feitos exercícios para retirada de muco e trabalhadas técnicas para expansão pulmonar.
Muitos bebês com a síndrome apresentam disfagia, ou seja, dificuldade de engolir. Alguns têm músculos flácidos, que precisam ser estimulados para melhorar a mastigação, deglutição e sucção. Também são comuns atrasos na fala e a chamada broncoaspiração, quando o alimento ou a própria secreção é aspirada. Isso faz que muitos bebês fiquem gripados frequentemente, inclusive com febre alta. Alguns casos podem levar à pneumonia.
As queixas nessa área, contudo, são as menos relatadas pelas mães. “Muitas vezes a mãe chega aqui sem queixa fonoaudiológica, mas a gente não sabe. O bebê pode, de repente, estar apresentando uma disfagia e não dá nenhuma característica”, afirma a fonoaudióloga da Pestalozzi, Ananda Rocha.
A equipe de fisioterapeuta, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional trabalha em conjunto no desenvolvimento neuropsicomotor. Uma área depende da outra. Os profissionais buscam marcos do desenvolvimento motor, como sentar, para traçar metas para o pacientes. “Só muda o objetivo a partir do momento que a criança atinge o marco do desenvolvimento”, explica a terapeuta ocupacional da Pestalozzi, Maria Iracema Santos.
Os profissionais não estipulam prazos para as famílias porque não há garantias de que sejam alcançados e as mães ficam ansiosas. Na terapia ocupacional, o primeiro desafio é o polegar espalmado, que tem consequências não só motoras, mas na percepção que a criança constrói sobre o ambiente ao redor.
Outro aspecto trabalhado é a cervical. Geralmente as crianças com zika chegam na posição fetal. “Tem que levantar o pescoço, fazer a coordenação visual motora, que é o alcance. É ele usar a mão na direção do objeto para que alcance”, afirma a terapeuta. Na estimulação, também são trabalhadas questões como a detecção e localização de som e a lateralidade, que trata do equilíbrio entre o uso dos dois lados do corpo.
O trabalho é conjunto também na hora de encorajar tanto a família quanto os terapeutas a continuar na luta por essas crianças. Muitas vezes, um pequeno avanço só é conquistado após meses de estimulação. “Tem mãe que vem para o tratamento e não é nem o cialis dia dela, mas ela vem só para escutar da TO [terapeuta ocupacional] ‘vai dar certo, tenha calma’ e foi o dia que ela ganhou”, conta o fisioterapeuta Wallacy Araújo.