por Camila Almeida
Publicado originalmente na EXAME
O Supremo Tribunal Federal decidiu, na última semana, permitir que as escolas públicas brasileiras mantenham o ensino religioso confessional, em que há domínio de uma única religião. A polêmica decisão testa os limites do estado laico, e foi questionada por uma série de setores da sociedade civil, especialmente por especialistas da educação e de direitos humanos. O principal ponto de crítica é que esse modelo abre margens para a doutrinação religiosa nas escolas, uma vez que a diversidade de credos não precisa constar na grade da disciplina. A antropóloga Débora Diniz, que é professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, coautora do livro “Laicidade de ensino religioso no Brasil” e pesquisadora de questões que envolvem bioética e seus conflitos morais, comentou com EXAME os impactos que a decisão do STF pode trazer para a realidade das escolas brasileiras.
O STF permitiu que o ensino religioso nas escolas seja confessional, ou seja, com a possibilidade de domínio de uma religião específica. Qual o impacto dessa decisão?
É surpreendente que tenha tido essa quantidade de votos sustentando a possibilidade da confessionalidade do ensino. A Constituição diz que tem que ter ensino religioso na escola pública. A pergunta sobre como deve ser esse ensino nunca foi regulamentada pela LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional]. A dúvida é como garantir que a oferta desse ensino, que está prevista na Constituição, seja capaz de contemplar a nossa diversidade sem transformar a escola pública – cuja missão é promover cidadania – em um espaço de proselitismo religioso. No ensino confessional, é impossível contemplar toda a diversidade religiosa brasileira. Então, a possibilidade de o ensino religioso contemplar a Constituição, mas não violar outros preceitos é ele sendo não-confessional. E é aí que está o risco da decisão, que apela para a tradição – como alguns ministros falaram –, que é a herança dos regimes de poder e da colonização do país. Todas as vezes em que nós apelarmos para a tradição, estaremos apelando para regimes de desigualdade de poder. Nós temos um crucifixo na Suprema Corte; não vamos ver ali uma representação de crenças indígenas nativas, da herança africana brasileira. Há uma série equívocos em decidir pela possibilidade da confessionalidade, porque o que ela vai representar majoritariamente é a hegemonia cristã, e não a diversidade de crenças que são igualmente legitimadas na escola pública.
O que pode mudar em relação ao que já temos hoje?
Eu não diria que teria uma mudança, porque grande parte das escolas que oferecem religioso já saem à cata de um pastor ou um padre para ensinar. Mas ela neutraliza uma luta que é uma disputa sobre o papel da escola pública. É uma disputa pelo lugar da religião na esfera pública brasileira. Essa foi uma das ações mais importantes a chegar na Suprema Corte sobre a separação entre estado e religião. E surpreende a Suprema Corte ser favorável à uma presença tão forte da religião na escola.
As escolas que adotam esse tipo de ensino hoje tem sido alvo de doutrinação? Ou ficam sob a ameaça de sofrerem esse tipo de abordagem?
O quadro de indefinição e de controvérsia política ainda faz faz com que a doutrinação tenha alguma reserva, porque há vigilância, porque há controvérsia nessa discussão. Mas no momento em que a Corte diz que [o ensino] pode ser confessional, ela está afirmando que pode transformar aquele espaço numa catequese. Como contemplar a diversidade religiosa, garantir a diversidade de interesses? No meu livro, nós avaliamos alguns livros didáticos de ensino religioso disponíveis. E, caso alguns deles fossem adotados na escolas, eles perpetuariam crenças discriminatórias e de exclusão de pessoas. O problema do ensino religioso é exatamente essa tensão, uma vez que as religiões pressupõem ter direito a atos e crenças que são consideradas discriminatórias numa ordem constitucional, como ocorre com a homofobia, por exemplo. Um dos maiores desafios do ensino religioso na escola é a sobreposição de um marco laico e de defesa intransigente da igualdade com o que se considera liberdade religiosa e suas práticas discriminatórias.
Em tempos de intolerância religiosa no mundo inteiro, que tipo de papel social o ensino religioso nas escolas pode cumprir?
Poderia, sim, ter um papel de promover a tolerância, de ensinar a história das religiões, de mostrar qual pode ser o papel das religiões na sociedade. Mas, no momento em que ela pode atravessar viagra pas cher a porta da escola e ser de doutrina, só vai aumentar a intolerância, porque os outros grupos não vão se considerar ali representados. Mas um ponto é muito importante: nós não precisamos de religião para ensinar a tolerância. O que nós precisamos é de concepções de cidadania, e eu estou segura de que a escola laica é muito mais capaz de ensinar a tolerância do que uma escola de matriz religiosa.
Essa é uma questão que deveria ser discutida via STF ou seria uma pauta a ser tratada no Congresso?
O tema constitucional e eu não teria dúvidas de que a Suprema Corte é o local certo para decidir sobre isso. Mas é surpreendente para mim essa confusão sobre o lugar da religião no espaço público, ainda mais nas escolas.
Pautas referentes a liberdades civis o país podem ficar atrasadas com uma decisão como essa? Legalização do aborto? Pesquisas com células tronco?
Essas são todas pautas em que a tradição religiosa entra na esfera pública, e esse é um exemplo do crescimento da força religiosa como uma força legítima para decisões do bem comum. Que a religião deva fazer parte do espaço público e ter voz é uma coisa, mas ela ser a porta de entrada para discussões sobre o ensino público é preocupante.
O ensino religioso não é obrigatório, é facultativo nas escolas. Existe ou pode existir algum preconceito no ambiente escolar em relação aos alunos que se neguem a participar das aulas de uma religião em que eles não acreditam?
Acredito que não. Porque esse ensino já acontece, já é facultativo, e não há preconceito. Eu não diria que é isso. O maior risco é ocupar esse lugar com um proselitismo de doutrinação religiosa. Mas o mais preocupante ainda é a Suprema Corte brasileira não entender o significado dessa separação entre escola pública e religiões. A religião é um bem, é uma instituição a ser protegida, mas a pergunta é: por que dentro da escola pública? O lugar dela não é ali.