por Giuliana Bergamo
Publicado originalmente na CLAUDIA
Realizada em duas etapas, em 2010 e 2015, a Pesquisa Nacional do Aborto mostrou que uma em cada cinco brasileiras entre 18 e 40 anos já interrompeu uma gravidez. O levantamento também traçou o perfil dessa mulher: ela tem filhos, parceiro fixo e é católica ou evangélica.
À frente do estudo está a antropóloga Debora Diniz, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e membro da Câmara Técnica de Ética e Pesquisa em Transplantes do Ministério da Saúde.
Autora de um documentário e um livro sobre casos de microcefalia causados pelo zika, ela concedeu esta entrevista a CLAUDIA por telefone.
CLAUDIA: Em novembro, o STF, ao julgar uma ação específica, decidiu que o aborto até a 12ª semana de gestação não é crime. O que isso muda na vida das brasileiras?
Debora Diniz: O aborto continua incluído no Código Penal como crime contra a vida, passível de prisão. O que o STF fez foi questionar o código com base na Constituição para decidir sobre um caso específico (veja o quadro abaixo).
Mas, concretamente, para as mulheres, o impacto desse julgamento vai depender do tempo. A decisão cria um precedente para um juiz de primeira instância se uma mulher procurar a Justiça para interromper uma gestação. Mas essa é uma situação pouco provável. Imagine o cenário: ela se descobre grávida e não quer ser mãe.
Para fazer o aborto pelos meios legais, tem de valer-se de um advogado e conseguir autorização de um juiz. O problema é que provavelmente alguém ou até o Ministério Público recorreria dessa ação. Só que existe um prazo de 12 semanas.
Para que algo mude para valer, é preciso tirar o aborto do Código Penal e, em outra etapa, legalizá-lo. Ou seja, tornar a interrupção da gravidez indesejada um direito da mulher.
CLAUDIA: Qual o perfil de quem aborta?
Debora Diniz: A pesquisa que fiz desmistifica três fantasias morais. A primeira, que o aborto é cometido por adolescentes inconsequentes ou mulheres promíscuas.
A segunda, que elas não sabem se planejar. Circula pela internet um meme com a frase “É fácil prevenir uma gravidez” e os preços de uma caixa de camisinhas e de uma cartela de pílula anticoncepcional.
Quem diz isso não entende a vida reprodutiva das mulheres: na prática, é dificílimo negociar o uso da camisinha com os homens, que não consideram responsabilidade deles o planejamento familiar. Além disso, é comum não lembrar de tomar a pílula todos os dias.
A terceira fantasia não reconhece em nossas mães, irmãs, filhas ou amigas as mulheres que fazem aborto. O que descobrimos é que a maioria das que abortam já tem filhos. E só o faz depois de avaliar que não tem condições de seguir com aquela gestação.
CLAUDIA: Em que condições essas mulheres interrompem a gravidez?
Debora Diniz: As clínicas especializadas (e ilegais) são cada vez mais raras. A maioria usa medicamentos adquiridos de forma ilícita. Muitas vezes, eles chegam fora da cartela – as mulheres nem têm certeza do que estão tomando.
Faltam dados importantes sobre o tema no Brasil: o número de mortes por aborto e quantas adoecem pela clandestinidade do procedimento.
CLAUDIA: Quem denuncia a mulher que aborta?
Debora Diniz: Às vezes, os próprios médicos. Há mulheres que chegam ao hospital sangrando, confiam no especialista, contam o que aconteceu e acabam algemadas na maca. E aí estamos falando de outro problema gravíssimo: a violação do sigilo profissional.
CLAUDIA: O que a levou a fazer essa pesquisa? Já fez um aborto?
Debora Diniz: Não fiz. Mas ele é bem comum entre as pessoas que estudo. Há anos pesquiso o sistema prisional, adolescentes e, mais recentemente, mulheres com zika e ouço várias histórias de aborto.
À medida que fui me firmando como pesquisadora feminista, muitas passaram a me escrever para contar o que acontece com elas.
CLAUDIA: Alguma história marcou você?
Debora Diniz: Recentemente, uma moça que se apresentava como universitária descreveu com detalhes quando e como administrou um remédio abortivo. Ela sentiu muita dor. Disse que o namorado ficou ao lado dela, no banheiro, reafirmando seu apoio.
Recebo mensagens de mulheres pobres que relatam total desamparo. Quando tomam remédio, não sabem de onde ele vem; se usam chás, não têm certeza de que a combinação de ervas vai funcionar; e, ao mesmo tempo, têm medo de procurar um médico e serem denunciadas.
Essas histórias mexem comigo, pois me obrigam a imaginar como é uma mulher fazendo aborto.
CLAUDIA: Você foi ameaçada por defender a descriminalização do aborto?
Debora Diniz: Sim. E sempre acredito nessas ameaças e tomo providências. Em duas ocasiões, abri processos e ganhei. Também sou procurada por pessoas que pedem ajuda para interromper a gravidez (e muitas vezes, são armadilhas de movimentos contra o aborto).
Para me proteger, respondo com firmeza: recomendo não correr risco de vida, cuidar da própria saúde e não me abordar mais. É horrível porque, quando se trata de um pedido legítimo, geralmente parte de pessoas que buscam acolhimento. Certa vez, a Anis recebeu uma doação anônima.
Só soubemos de quem era quando uma mulher, que como tantas outras havia me procurado meses antes solicitando ajuda, escreveu se identificando e dizendo que respeitava o meu trabalho, entendia a minha postura dura e que aquele era o valor que ela havia pago por um aborto clandestino.
CLAUDIA: É comum ouvir que o aborto sempre leva a um trauma.
Debora Diniz: O que traumatiza é a clandestinidade. É ser considerada criminosa. É ter medo de morrer. É sangrar e não poder procurar ajuda.
No dia 29 de novembro, a primeira turma do Supremo Tribunal Federal julgou o habeas corpus que, em 2014, revogou a prisão preventiva de cinco pessoas que atuavam em uma clínica de aborto clandestina em Duque de Caxias (RJ).
Ao votar, o ministro Luís Roberto Barroso emitiu um parecer defendendo que praticar aborto até a 12a semana de gestação não é crime e, portanto, os réus não deveriam ser presos. O voto foi acompanhado pelos ministros Rosa Weber e Edson Fachin. Tal entendimento vale apenas para esse caso específico e não altera o Código Penal, segundo o qual aborto é crime passível de prisão.
No entanto, outros juízes podem usar o mesmo entendimento para julgar futuros casos.