10 de janeiro, 2017
por Natacha Cortêz
Publicado originalmente em TPM
Brasília. Julho de 2004. Era pra ser só mais um almoço entre amigas. Até que o celular de uma delas toca. Do outro lado da linha está Richard Reiter, então um diplomata da embaixada norte-americana. Ele procura pela antropóloga e pesquisadora Debora Diniz, quer saber da ação encabeçada por ela e apresentada ao Supremo Tribunal Federal pedindo o direito ao aborto para mulheres grávidas de fetos anencéfalos (sem cérebro). Debora, na época com 34 anos, era mesmo a principal articuladora da ação, mas não esperava por aquele telefonema, que sondava algo como “o governo Bush quer saber se com essa ação existe a possibilidade da liberação do aborto no Brasil”. “Não tinha dimensão do que significava”, lembra. Foi a amiga com quem almoçava, a jornalista Eliane Brum, quem a alertou da importância do que tinha acabado de acontecer.
Apesar de não imaginar que seria interpelada pelo governo americano, não faltava gente perguntando o que Debora andava fazendo. Dois anos antes, o anúncio do início de uma pesquisa comportamental sobre aborto (que mais tarde se tornaria a mais relevante feita no país) levou seu nome aos principais jornais. E o envolvimento com o tema teve seu preço. Ela era professora na Universidade Católica de Brasília quando foi demitida sem justa causa, em plena metade do semestre e por telefone. “Não tive dúvidas, foi um pedido da Igreja.” No Brasil, ser associada à descriminalização do aborto nunca foi um belo cartão de visitas. Contrariando o presente amargo que experimentava, Debora fez da demissão o estopim para uma jornada intensa – e prazerosa – na luta por direitos humanos, que segue firme e forte até hoje. “Se até ali eu não era uma militante incansável, a Igreja acabava de me fazer uma.”
“É preciso ouvir o mundo. A humanidade sempre resiste”
Debora Diniz
Foram oito longos anos até que o Supremo acatasse a ação pelo direito ao aborto em casos de anencefalia em 2012. Nesse tempo, Debora não descansou. Se tornou professora na Universidade de Brasília, onde está há 12 anos. Viajou o mundo, passou por universidades, embaixadas e governos, defendendo a importância da descriminalização do aborto. Produziu, junto com Eliane Brum, Uma história Severina (2005), documentário sobre a jornada de uma agricultora pernambucana que enfrentou o STF e conseguiu o direito, tardio (aos 7 meses de gestação), de abortar um anencéfalo. Como se não bastasse, mergulhou em outras causas. “É preciso ouvir o mundo. A humanidade sempre resiste.”
Contra Deus, o Estado e o que vier
Para ouvir mais do mundo, foi dos manicômios judiciários ao sistema prisional brasileiro, passando pelo direito de morrer até a Cracolândia. Registrou tudo em filmes, livros e artigos. Recebeu mais de 90 prêmios por eles.
No começo deste ano, quis contar outra história. A das crianças afetadas por um surto de microcefalia em Campina Grande (PB). Ali, construiu a tese pra mais uma ação no STF, a de planejamento familiar e proteção à maternidade e à infância, que inclui o pedido da interrupção da gestação se a mulher adoecida com o vírus da zika estiver em sofrimento mental. Esta entrevista antecede o julgamento da ação. Debora sabe que não se pode fazer previsões sobre o STF agora, mas tem alguma esperança: “É potente quando o ministro Luís Roberto Barroso diz que o aborto não pode ser crime pois viola direitos fundamentais das mulheres”, diz, se referindo à decisão do Supremo, de 29 de novembro, de revogar a prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina.
Debora recebeu a Tpm em Brasília, na sede da ONG que ajudou a criar há 17 anos, a Anis – Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero. Só naquela manhã, antes de nos encontrar, participou de uma reunião no Ministério do Desenvolvimento Social pra discutir assistência às mães de crianças com microcefalia e falou com o Fantástico sobre a nova Pesquisa Nacional de Aborto – na qual encontrou que meio milhão de brasileiras abortou em 2015.
Nas próximas páginas, a vida e as ideias de uma mulher que enfrenta Deus, o Estado e o que vier pra gritar por quem tem a voz silenciada.
Tpm. O surto de microcefalia segue entre nós, mas a Organização Mundial da Saúde tirou o aviso de emergência global sobre a questão. Por quê?
Debora Diniz. Pra ser uma emergência global, tem que ser algo não usual, extraordinário e desconhecido. Zika é usual agora, é ordinária, pois sabemos como é causada, e é conhecida. A OMS só tirou o aviso por isso. Não é que tenha deixado de ser um problema de saúde pública.
Mas o “alarme” pode voltar? Pode voltar se virar uma pandemia, que é uma epidemia de proporções globais.
Isso deve acontecer? Provavelmente não. Em muitos países não há o mosquito abundante como aqui. E em outros países também existe aborto. Então, essa é uma epidemia de lugares tropicais e pobres, onde há mulheres invisíveis aos olhos do Estado. Agora, o Rio de Janeiro e a Bahia são os dois maiores estados de pico, o próximo será o Mato Grosso.
Agora com a zika, pela segunda vez você leva uma ação ao STF. Como se emplaca uma ação no Supremo? É um processo longo. Não é só conhecer as pessoas certas, mas é isso também. Com a zika, a gente fez um filme, escrevi um livro e uma tese. É preciso um bom advogado e uma associação que emplaque, além de toda uma articulação com movimentos sociais. Nunca é uma trajetória solitária, individualista. Não dá pra dizer “foi a Debora que levou a zika pro STF”. Esse é o maior erro quando essa história é contada.
E quais são suas previsões? Quem fizer qualquer projeção sobre o Supremo neste momento mentirá. É um enigma o que está acontecendo neste país. Mas, veja, eles têm uma saída fácil, que é dizer que a associação que nos representa não é legitimada, e então nem inserir na pauta.
Por que não seria legitimada? Alguns dizem que a Associação Nacional dos Defensores Públicos [que representa o grupo encabeçado por Debora] só pode apresentar matéria de interesse da categoria, aumento de salário dos assessores, por exemplo, e não uma ação como a nossa.
A ministra Cármem Lúcia, presidente do STF, anima você? Tenho uma confiança nela por causa de seus votos anteriores. Anencefalia, união homoafetiva, educação religiosa, em todas essas matérias votou bem. E poderia fazer história sendo uma mulher num caso como esse. Agora, tenho uma informação nova. O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos entrou como amigo no caso, que é quando você pede pra participar da ação. Apresentaram um relatório dizendo que proibir a mulher de abortar, nesse caso, pode ser qualificado como tortura.
E isso pode ajudar? Com certeza. É a primeira vez que eles se pronunciam em um caso no país. Isso é muito original.
A luta por essa decisão está sendo tão difícil quanto foi com a anencefalia? Sabe por que não está sendo? Porque ninguém fala do assunto. Na época da anencefalia foi um escândalo. Se falava o tempo inteiro da ação, que foi a primeira audiência pública convocada na história do Supremo. Em 190 e tantos anos de história do tribunal, foi com a anencefalia que os ministros quiseram ouvir o mundo. Agora é diferente, o Brasil escolheu falar de crise política e Olimpíadas, por exemplo. Escolhemos nossas pautas e a epidemia de zika e microcefalia não foi uma delas. E outra coisa, essa pauta é ruim pro governo. Seja para Dilma ou pro Temer, ter a ação aprovada no STF causará polêmica. Quero te contar uma coisa.
Conte. Em 2010, fizemos a Pesquisa Nacional de Aborto, na qual encontramos que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez um aborto na vida. Reproduzimos o estudo agora, só que com uma pergunta que nunca foi feita antes no Brasil: você fez aborto no último ano? Com esse questionamento encontramos meio milhão de mulheres só em 2015.
É muita mulher. E sem amparo nenhum do Estado. Isso um dia vai mudar? Particularmente, acredito que ainda vou ver a descriminalização do aborto como uma conquista no Brasil.
Essa última decisão do STF (em 29/11) de revogar a prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto no Rio de Janeiro e não considerar crime o aborto até os três meses de gestação é um começo? É uma decisão profundamente importante de um caso específico, que mostra que o Supremo parece estar preparado para enfrentar o aborto como uma questão constitucional e de direitos fundamentais das mulheres. É potente quando o ministro Luís Roberto Barroso diz que o aborto não pode ser crime pois viola direitos fundamentais das mulheres.
Você assiste a realidades muito duras – as mães vítimas do zika na Paraíba, as mães de bebês anencéfalos, pacientes dos manicômios judiciários na Bahia, a Cracolândia em São Paulo. Dá pra manter fé na humanidade depois de ver tudo isso? Me fortaleço quando escuto um mundo que não é o meu. Olhar pra ele pode até me deprimir, mas me traz força pra agir e treinar novas gerações. Me manter como professora é garantir que há uma perpetuação da transmissão disso. A parte mais difícil não é ir lá, assistir às tristezas do mundo e voltar pra dormir. É treinar alguém, é compartilhar com alguém que isso aqui [o trabalho da Anis] faz sentido e importa. Estamos num mundo onde as pessoas querem consumo, querem marido, querem filhos, querem acumular coisas e onde a disponibilidade pro outro, sem ter missão religiosa, fica tímida.
“Me interessa o que a religião pensa porque ela importa pras pessoas, mas não pra mim”
Debora Diniz
Você foi criada acreditando em Deus? Sim. Fiz primeira comunhão até.
E hoje, acredita? Não é uma questão pra mim. Acredito neste mundo. A vida é esta. Quando fui demitida e teve a história toda do aborto, me ameaçaram de excomunhão. Não me importo com a excomunhão, mas foi sofrido explicar às pessoas de que gosto que eu não era o que a Igreja dizia. E religião importa pras pessoas. Quando o papa diz que perdoa as mulheres que fazem aborto, isso me toca e vou repercutir porque conheço mulheres pra quem a religião importa e a quem esse perdão vai ser um acalento. Me interessa o que a religião pensa porque ela importa pras pessoas, mas não pra mim.
Quem trabalha contigo hoje? Todas são ex-alunas. Tem duas que conheci na cadeia também, eram detentas. Somos em dez. Oito mulheres e dois homens. Psicólogas, médica, socióloga, cientista político, bibliotecário, profissionais do direito.
Anis é uma ONG financiada por doações. Como está financeiramente? Este ano enfrentamos nossa pior crise, praticamente fechamos. Viemos pra este lugar porque a dona nos cedeu, estamos aqui sem pagar aluguel. Nossos temas não são financiáveis. Sistema prisional, aborto, quem financia? Mas, por causa do zika, voltamos a ter uma agenda prioritária para o cenário internacional, por isso temos alguns financiadores estrangeiros e, dos nacionais, o CNPq. Grande parte das pessoas que atuam aqui é voluntária, assim como eu e Marcelo, meu marido. Então a Anis é uma organização muito barata.
E vocês aceitam financiamentos de pessoas físicas? Sim. Mas quem quer doar dinheiro pra quem fala de aborto?
“No Brasil, quem apoia a descriminalização do aborto corre o risco de perder negócios por conta de uma bancada religiosa”
Debora Diniz
E quem não quer? O empresário brasileiro? Isso. O empresário internacional não tem essa questão. A concepção de economia junto com liberalismo de direitos está muito forte, por exemplo, na cultura norte-americana. No Brasil, quem apoia uma causa como a nossa corre o risco de perder negócios por conta de uma bancada religiosa. Mas, mesmo assim, definimos que nunca vamos abandonar essa causa. Aborto não sai da nossa agenda, mesmo que a gente feche. Outra coisa: atuar no terceiro setor sem oferecer serviços, que é o que a gente faz aqui, é difícil. Uma ação pro Supremo, por exemplo, ninguém sabe quando vai ser avaliada ou se sairá vitoriosa. Mas sinto que isso está mudando devagar. A pessoa que nos cedeu este espaço é um sinal de um empresariado mudando.
Como é morar em Brasília agora? Com a crise política, com o impeachment? Eu não territorializaria Brasília. Rodei o Brasil inteiro este ano e senti um clima geral de inconformismo. Na avenida Paulista era impressionante, até mais intenso do que aqui. Em tempo, eu não vou de amarelo pra rua. Se você me perguntar se foi golpe, direi: “Sim, foi golpe”.
Como vê o atual momento político brasileiro? É dramático. Hoje de manhã eu estive no Ministério do Desenvolvimento Social para falar sobre assistência social para as mães de crianças com microcefalia. E um cara poderoso pegou a calculadora, fez umas contas erradas e disse: “São tantos milhões, não temos condições”. Respondi: “Quantos desembargadores acima do teto temos? O pagamento deles dá muito mais que esses tantos milhões”. Alguém da plateia gritou: “Mas eles são intocáveis”. Então, não dá pra ter uma conversa sobre responsabilidade fiscal e redução de gasto.
Este momento do país interfere no trabalho no terceiro setor? Integralmente. Todos os temas que não são dos intocáveis, são dos pobres, das mulheres, não são agendados.
Não são agendados depois do impeachment ou antes também não eram? Já vínhamos de uma crise de legitimidade. O golpe é só uma consumação de uma ruptura, que vinha mostrando toda a sua força desde o início, desde a reeleição [de Dilma].
“Nunca me filiei a nenhum partido político porque eles não são bons pras mulheres”
Debora Diniz
Como você avalia a gestão da Dilma? Olha, nunca me filiei a nenhum partido político porque eles não são bons para as mulheres. Especialmente quando se fala em aborto. Nenhum no Brasil consegue enfrentar essa questão. Nem os mais de esquerda. Mas, respondendo sua pergunta, para o que fazemos aqui a gestão de Dilma não foi boa. A do Lula foi. O prêmio da Pesquisa Nacional de Aborto que ganhamos da OMS foi uma recomendação do José Gomes Temporão, ministro do Lula.
Dilma não levantou a descriminalização do aborto em nenhum momento. Nem com 70% de aprovação, nem tendo uma secretaria de mulheres. Nem com Eleonora [Menecucci]. E Eleonora é uma mulher espetacular! Fazia abortos nos anos 80, era treinada pra isso. E o que essa política fez com ela quando assumiu a Secretaria de Políticas para as Mulheres?!
Quando essas mulheres chegam ao governo, são silenciadas. Sim. Sei que Eleonora sofreu muito. A Dilma conheço menos. Eleonora conheci da vida acadêmica, então posso garantir. É uma mulher comprometida com os direitos das mulheres, mas não conseguiu fazer nada quando esteve no governo.
Você dizia presidenta ou presidente pra Dilma? Presidenta. Primeiro porque ela queria assim, não era?! Então era um princípio básico de respeitá-la. Segundo porque a linguagem importa pra gente provocar sentidos.
Aceitaria um cargo público? Não, nenhum, nunca. Nem chefia de departamento. Não seria quem sou se tivesse ocupado qualquer cargo de poder. Porque eu teria que ser enquadrada e meu tempo seria para gerenciamento do uso da máquina pública. Também teria que entrar em amarras de negociações.
Já te ofereceram? Várias vezes. Na Comissão de Ética Pública do governo federal, por exemplo.
O que significa ter poder para você? É fazer o que eu tô fazendo aqui. Fazer o que a gente acha que é o certo. Parece arrogante, mas é isso, poder pra mim não é estar em espaços de poder formais, é fazer o que quero.
Qual é seu maior medo? Não poder mais fazer o que faço. Se isso me fosse proibido, algo como uma restrição democrática…
Um exílio? Sim, isso seria muito sofrido. Acho que eu me filiaria imediatamente a um partido se tivesse algo como um golpe militar, uma coisa nesse sentido.
Houve alguma vez que você se sentiu cansada, sem esperanças e quis parar? Não. Mesmo essa possibilidade de dizer “Estou cansada, quero parar” sendo permanente pra mim, porque não é um vínculo de emprego. Não é aqui que ganho o meu salário, aqui sou voluntária. Meu salário vem da universidade.
Quando você desliga? Quando estou em casa, com os meus cachorros. Ou quando medito.
Há quanto tempo você medita? Há uns 20 anos. Faço ioga também. Não importa onde eu esteja, faço minha prática. E sou vegetariana.
Por que começou com a meditação e a ioga? Perdi a audição devido a uma doença autoimune, a doença de Ménière. Tinha acabado de sair da faculdade. Disseram que eu ia perder o equilíbrio e não ia ter vida independente. E aí passei a estudar por minha conta e tomei minhas decisões. Nunca tive crise, consegui controlar a doença através da ioga, da dieta vegetariana e da meditação.
Então existe uma preocupação de… Uma ascese muito grande. É nesse sentido.
Pesquisando sobre você, encontrei muita coisa acadêmica, muito sobre seus filmes, mas nada sobre sua família. Tenho uma família comum. Minha mãe era dona de casa e professora de francês, meu pai funcionário público militar. E tenho dois irmãos e uma irmã.
Você nasceu em Maceió? Foi. Mas logo fomos morar no Rio de Janeiro. E do Rio fomos pra Recife, e de Recife pro Rio de novo. A gente se mudava a cada dois anos por causa do trabalho do meu pai. Por volta dos meus 14 anos, viemos pra Brasília. Meus pais ainda foram pra Bahia e depois Maceió novamente, mas eu e meus irmãos ficamos aqui pra estudar.
E onde seus pais moram hoje? Numa ilha, em Alagoas. Chama Barra de Santo Antônio, um lugar muito pobre. Ele tem 81, e ela, 74. São absolutamente independentes e mantêm um projeto para 40 crianças. O nome é Crianças da Ilha. Eles ensinam o que sabem: ler mapas, falar francês, tocar algum instrumento.
Foi da família que veio o estalo de trabalhar com direitos humanos? É difícil falar em estalo. Fica parecendo aquelas profecias que a gente faz olhando pra trás. O que aconteceu é que não teve outro jeito de existir. Mas acredito que a literatura, que foi o principal vínculo de pensamento com a minha mãe, tenha me influenciado. Hoje, estudo muito mais pela literatura do que pela teoria formal. Pra pensar zika, fui ler Gilberto Freyre e Jorge Amado.
E o seu marido, o que faz? Marcelo [Medeiros] é economista e sociólogo, um nome muito conhecido nos estudos da desigualdade no Brasil. Agora, pesquisa os 10% mais ricos do país. É também professor da UnB. Nos conhecemos na faculdade de economia. Estamos juntos há uns 25 anos.
Vocês não têm filhos? Não. E essa nunca foi uma decisão objetiva. A vida vai acontecendo, vai ficando boa e aí chega num momento em que você pensa objetivamente “por que ter filhos?”. Um dia, essa pergunta não existia mais. Eu estava fazendo doutorado, tudo parecia muito arrumado, inclusive a vida na militância, e pro Marcelo sempre foi “tudo tá bom”. Acabamos que não tivemos. Mas tivemos dois cachorros, que viveram conosco 16 anos e agora chegou a segunda ninhada. São poodles. E hoje tem o seguinte: não vou mais ser mãe aos 46.
A não ser que você adote. Então, aí a resposta é não. Mas posso ter mais cachorros. Não é nenhuma ironia nem um sarcasmo com quem tem filho. É que na minha vida não caberia. Te dou um exemplo claro: estava na Guatemala semana passada, saí de lá e fui pra Cracolândia, liguei pro Marcelo e disse: “Cheguei”. Ele perguntou: “Chegou aonde?”. Nem ele tinha certeza.
Teve cobrança para você ter filhos? Não consigo me lembrar em que momento pararam de me perguntar sobre o assunto. Mas essa pergunta nunca foi feita ao Marcelo. E é também uma pergunta permanente pros meus pais: “Como assim suas filhas não têm filhos?”. Nem eu nem minha irmã tivemos, só meus irmãos. Mas, enfim, acho que pararam de me perguntar quando entenderam que eu tinha uma carreira, quando tinha como justificar a não maternidade. “É porque ela trabalha muito”, diziam. Não, não é porque eu trabalho muito. É pelo que desejo da vida, o que quero dela. Se meu desejo estivesse em filhos, eu os teria.
Parece que sua vida profissional está muito entrelaçada na vida não profissional. Não chamaria de vida profissional. Tenho uma explicação bastante freudiana pra isso: minha libido está na vida intelectual. Isso que você chama de profissional, pra mim é a vida do pensamento. Essa separação do prazer, do trabalho e da vida doméstica, não existe.
Se não existe essa divisão, não dá pra dizer que coisas foram deixadas de lado por causa da sua vida profissional, certo? Veja: o trabalho é um sofrimento pra quem está dentro de um chão de fábrica, talvez seja uma alienação da existência pra quem sai de casa às 5 da manhã e trabalha o dia inteiro como empregada doméstica. Assim ele pode mesmo ser um objeto de sofrimento. O que consegui fazer com meu trabalho fez ele ser o objeto do desejo da minha existência. E essa é uma das dificuldades de quem trabalha comigo, de me seguir no ritmo. Ou você desenvolve a libido ou o mundo passa a ser um sofrimento. Porque aqui na Anis o mundo bate à porta o tempo inteiro. A gente tá aqui e vem alguém dizendo: “Tenho um caso pra vocês”.
O que é um caso pra vocês? Em geral, é uma interpelação do mundo a nós. É o que bate à porta. Solitário anônimo [documentário de 2007 sobre um homem obstinado a planejar e controlar sua morte] é um exemplo. Um dia uma promotora me ligou contando de um senhor que foi encontrado caído com o seguinte bilhete: “Sou solitário anônimo, não vivo nesta parte do país; por favor, me deixe morrer em paz”. Quando ela falou, pensei: “Isso não é um bilhete, é um roteiro de uma história”. Solitário não conseguiu que seu desejo fosse cumprido, teve que ser tratado em um hospital. Mas enfim, as histórias vêm até nós. As pessoas querem ser ouvidas. E tentamos aqui trabalhar com as pessoas, não por elas. Por isso o documentário é um instrumento tão importante de voz.
A Cracolândia também bateu à porta? Sim. Eu tinha feito A casa dos mortos [documentário que expõe o cotidiano de um hospital psiquiátrico da Bahia] e ali foi minha aproximação do sistema prisional. Depois fiz um censo dos manicômios judiciários, os 28 do país. Em seguida, escrevi o livro Cadeia, fiquei um ano na penitenciária feminina de Brasília, dentro da unidade de saúde. O diretor da área sabia que eu estava no presídio e disse: “Olha, tem um lugar que é a órbita do sistema prisional, que é a órbita dos manicômios judiciais, a Cracolândia. Aquilo ali é um presídio a céu aberto. Quer fazer um filme lá?”. Em uma semana eu tava lá.
E como foi pra filmar ali? Foi uma longa negociação com os “disciplinas”, os traficantes chefes. Porque a região é chefiada pelo PCC e a polícia não entra. Já a prefeitura, só entra através da assistência social. Uma das assistentes me ajudou com os disciplinas. Foi a primeira vez que uma câmera entrou exposta no fluxo [região onde os usuários se concentram]. No filme, conto a história de uma menina que está na rua desde os 7 anos e que, aos 25, é acolhida pelo programa de redução de danos da prefeitura de São Paulo, o Braços Abertos.
Você ficou cara a cara com os homens que chefiam a Cracolândia? Fiquei. Eram dois. Tinha essa cena que eu queria fazer dentro do fluxo e fui pedir autorização a eles. Quem intermediou nossa conversa foi uma assistente social, uma mulher na qual eles confiam. No nosso primeiro encontro, eles pediram pra eu trocar de roupa só para mostrar que poderiam mandar em mim.
Quando estava no meio do fluxo, passou pela sua cabeça algo do tipo “a raça humana deu errado”? A Cracolândia é um campo de refugiados. Quando aquelas pessoas estão no chão e o carro-pipa entra lavando elas… Nada do que vi na vida é parecido com aquilo. Quando vejo essas coisas, tenho certeza de que nós não estamos certos.
Você deve ter se aproximado das personagens dos seus docs, por exemplo Severina ou o personagem de Solitário anônimo. Tem notícias deles? Sempre. Uma coisa que faço: volto com o filme pra ser aprovado por quem é mostrado nele. Com a Severina, assinamos um contrato. Nenhum dos meus personagens é pago, mas eu disse pra ela: “Se o filme ganhar algum prêmio, é seu. Então, mantivemos anos de contato porque o filme ganhava um prêmio aqui e outro ali. E, no dia do julgamento [da decisão do STF sobre aborto em casos de anencefalia], dez anos depois das filmagens, trouxemos ela a Brasília. Com as mulheres do zika, eu mantenho um grupo de WhatsApp e todos os dias nos falamos [Debora pega o celular e mostra dois grupos de mães de crianças com complicações neurológicas. Um é da Paraíba, o outro, da periferia do Rio de Janeiro].
É muita história, parece até que você tem 150 anos. Sabe, a gente tem que ir pro mundo, fazer as coisas, se incomodar. Porque senão todos os nossos privilégios – os meus de ser uma mulher branca, criada em uma elite nordestina, com pais generosos – não servem de nada.
Você já viajou o mundo. Já falou em muitas universidades, para governos, já esteve em muitos espaços de poder, na ONU, no STF. Estar nesses lugares, sendo uma mulher, é uma vaidade que um dia você ambicionou? Não. Mesmo. Reconheço que estar nesses espaços é a chance de um diálogo absolutamente importante, e ser uma mulher geralmente é um caráter inesperado na maioria deles. Recentemente fiz um dia de peregrinação com deputados e senadores americanos no congresso de lá, e eu estava ali pra falar de zika. Aquele era um momento importante em um espaço ocupado por homens. Então, essa voz da ciência e da militância pode ser uma voz de poder se bem utilizada. Mas o exercício dela me cansa muito mais do que dormir 15 dias na cadeia.
Você já se sentiu menosprezada nesses espaços de poder? Veja, oficialmente sou uma cientista social, é uma profissão não regulamentada, não existe pra nada. A principal interpelação que se faz a mim é: “Quem você pensa que é?! Não é nem advogada nem médica”. Isso eu já perdi as contas de quantas vezes ouvi.
Mas você recebeu mais de 90 prêmios… Sim. Mas essas coisas são ditas como ofensa, é uma forma de me diminuir, de me apagar. A demissão [na UCB] foi isso.
Foi o pior “apagamento”? Claro! Tem coisa pior que uma demissão em um momento da vida que você tem que pagar contas? Em um momento em que você não tem a segurança se está no caminho certo? Eu senti vergonha. E me questionei: “Será que tô certa?”. Até porque as pessoas me falavam: “Mas também, você estava numa universidade católica”. Eu tinha 30 anos, não tinha ninguém para me dar a mão e dizer: “Você tá certa e a gente vai sobreviver”. Pagar as contas é uma forma importante de ser alguém.
Houve alguma vez em que temeu a própria vida? Teve uma vez em 2004 que abri uma queixa-crime, tive que fazer uso do direito penal pra me proteger. Eu estava dando aula e um sujeito entrou partindo pra cima, dizendo que eu era uma assassina, uma abortista. Era o assessor de um deputado.
O que ele estava fazendo na universidade? Ele me seguia. Na militância, ou você é nada conhecida e age na clandestinidade, ou você é muito conhecida e aí há um ônus que é ser ameaçada.
Já foi muito ameaçada? Muito. Na época da anencefalia os ataques eram constantes. Mas hoje não mais. Entrei num patamar de respeito, de que mexer comigo pode dar problema.
Esse respeito tem a ver com a sua intensa produção acadêmica? Não tenho dúvida. Não sou apenas uma militante, sou uma cientista. A vida acadêmica me fez um escudo de respeitabilidade. Além da academia, o casamento também me protegeu de uma imagem desacreditada. E, além do marido e dos diplomas, sou vaidosa, sou “mulherzinha”, e isso é bem-visto no nosso mundo.
E cantada, assédio, já aconteceram nesses espaços de poder? Muito, muito. Mas criei alguns códigos. Nunca aceito jantares com homens. Não vou a reu niões que viram jantares e que viram sei lá o que mais. Não é moralismo nem puritanismo. Se eu quiser me relacionar com alguém, vou me relacionar.
Dos lugares que você já esteve no mundo, qual é o mais difícil de estar por ser mulher e pesquisadora? A universidade brasileira. Se chego hoje no Japão, chego sendo sensei. Estou no topo da hierarquia, mesmo sendo mulher ou gringa, sou sensei. Agora, no Brasil não, aqui é um jogo permanente contra o machismo.
Já pensou em sair do país? Nunca. Meu lugar é aqui. Só saio para trabalhar, como vou fazer agora. No ano que vem moro um ano nos EUA, vou ser pesquisadora visitante na Universidade de Yale e pesquisar zika.
Qual é seu maior desejo? Viver muito.
Tipo 90 anos? Viver muito como meus pais e poder ir até o fim pensando.