por Debora Diniz
Publicado originalmente em The Huffington Post
O SAMU foi chamado para acolher uma mulher sangrando. Era um caso de aborto espontâneo em Campo Grande. Da ambulância, a mulher saiu escoltada para o hospital. Devia parecer alguém tão suspeita ou perigosa que teve vigilância permanente durante a curetagem. O caso pedia ainda mais urgência, quem sabe uma confissão pela insistência: o depoimento com a delegada foi colhido ainda no hospital.
A mulher era suspeita de um crime abominável, ter provocado em si mesma o aborto de um feto de 16 semanas. O marido da vítima contou que era já o terceiro aborto espontâneo, pois a companheira teria dificuldades em manter a gravidez.
Não é preciso ser uma especialista em aborto ilegal para saber que poucas mulheres chamariam o SAMU se tivessem provocado um aborto – mesmo sofrendo, elas se resignariam ao sofrimento ou só procurariam os hospitais quando não houvesse mais alternativa. E jamais convidariam estranhos à cena do aborto.
A delegada concluiu que há “morte a esclarecer”. Não sei se entendi bem a conclusão do inquérito, pois se houve algum crime evidente neste caso foi o de violação da intimidade. Privacidade, intimidade e confidencialidade não são deveres éticos desimportantes para os cuidados de saúde.
Alguém violou a privacidade desta mulher e este é o crime que a polícia deveria se preocupar. Mas não, a fixação foi no útero da mulher sangrando. Talvez, para fazê-la sofrer ainda mais.
O SAMU tem policiais e bombeiros vinculados às suas atividades, mas como equipes complementares aos cuidados médicos. Por isso, as palavras da Secretaria de Saúde de Campo Grande, segundo o Portal Catarinas, dão uma pista de onde pode ter partido a quebra do sigilo no atendimento médico – “confidência, que é um princípio básico na relação médico paciente, pode ser ‘quebrada'”.
Não é verdade o que diz a Secretaria de Saúde. As excepcionalidades em que o sigilo médico pode ser rompido não contemplam este evento e mais: jamais se determinou que é dever dos profissionais do SAMU informarem à polícia eventos suspeitos.
O caso de Campo Grande deve nos causar um profundo mal-estar. Primeiro, pela dor desta mulher: de paciente foi transformada em algoz de si mesma, e vigiada como criminosa por quem esperava ser cuidada. Segundo, pela distorção do papel do SAMU ao entrar na intimidade das pessoas em sofrimento – é para cuidar, jamais para vigiar ou denunciar.
Por fim, e o mais importante, é por nos mostrar como o estigma do aborto impede até mesmo cuidados emergenciais de saúde. Se há mesmo algo a esclarecer sobre este caso, não é o aborto espontâneo desta mulher, mas a humilhação que sofreu pela violação de sua intimidade.