Amanda Taub e Max Fisher
Publicado originalmente no The New York Times
MACEIÓ — Nós viajamos para o Brasil este semestre por muitas razões, e uma delas era tentar desvendar um enigma que tem nos incomodado há meses.
A sabedoria popular disse que o WhatsApp, famoso serviço de mensagens do Facebook, cumpriu um papel enorme e potencialmente decisivo na circulação de informações falsas que levaram brasileiros em direção ao candidato de extrema direita, Jair Bolsonaro, cuja candidatura era considerada um tiro no escuro.
Quanto mais procuramos, porém, mais difícil foi conciliar isso e o que sabíamos sobre redes sociais e o que estávamos encontrando no Brasil.
Em primeiro lugar, o WhatsApp é apenas um serviço por meio do qual usuários enviam mensagens. Ao contrário de plataformas abertas e controladas por algoritmos, como o Facebook, o WhatsApp serve mais como um vetor passivo para o extremismo e o conspiracionismo pré-existentes do que um gerador dessas coisas. Essa emoção e conteúdo estava vindo de outro lugar.
Além disso, quanto mais observamos a extrema direita ascender no Brasil, mais nós encontramos histórias de radicalização e desinformação, centradas não no WhatsApp, mas no YouTube, que, inclusive, muitos políticos de extrema direita citam como um fator decisivo em suas eleições.
Pousamos no Brasil esperando conseguir desvendar esse aparente enigma. O que realmente aconteceu, por que tantos observadores creditavam tais acontecimentos ao WhatsApp e o que isso significou a respeito do poder da rede social de distorcer ou estremecer democracias pelo mundo?
Tudo começou a se encaixar quando conhecemos Luciana Brito, psicóloga de voz suave que trabalha com famílias afetadas pelo vírus Zika.
Seu trabalho a colocou na linha de frente da batalha contra teorias da conspiração, com ameaças e ofensas circulando em ambas as plataformas. Isso lhe permitiu ver o que nós — como tantos outros — não vimos: que o WhatsApp e o YouTube formaram um poderoso e, por vezes, perigoso ciclo retroalimentado de extremismo e desinformação.
Cada uma das plataformas tem, em si mesma, diversas fragilidades. Juntas, porém, formaram um canal condutor de desinformação, disseminando teorias conspiratórias, material de campanha e propaganda política por todo o Brasil.
Farshad Shadloo, porta-voz do YouTube, afirmou que a empresa concluiu que 1% de seus vídeos constituíam fonte de “desinformação prejudicial” ou de outras formas de conteúdo “limítrofe”. A empresa viu a audiência de novos canais crescer no Brasil, acrescentou. Shadloo questionou as denúncias de que comunidades no WhatsApp disseminaram ainda mais mensagens que teriam viralizado primeiro no YouTube.
O fluxo YouTube-Whatsapp
A primeira reviravolta ocorreu quando falamos com Yasodara Cordova, que, na época, era pesquisadora no Harvard’s Berkman Center for Internet and Society.
O analfabetismo continua difundido em algumas partes do Brasil, disse ela, fazendo com que redes sociais baseadas em textos e veículos de comunicação escrita não sejam opções para essas pessoas. Redes de TV podem ter baixa qualidade, o que contribuiu para o crescimento excepcional do YouTube em muitas regiões do Brasil, especialmente no acesso por celular.
Mas o YouTube teve menos sucesso em regiões mais pobres do Brasil por uma razão simples: os usuários não podem pagar pelos dados móveis de acesso à internet.
“A internet no Brasil é bastante cara”, disse Cordova. “Creio que seja o quarto ou quinto país em termos de preço da internet.”
O WhatsApp acabou por ser uma alternativa. O aplicativo de mensagens tem acordos com algumas operadoras para oferecer uso gratuito. Assim, usuários mais pobres descobriram outra opção para contornar o acesso mais caro ao YouTube. Eles compartilham trechos de vídeos do YouTube que viam no WhatsApp, onde se pode assistir e compartilhar de graça.
Cordova suspeitou de que a desinformação disseminada pelo WhatsApp frequentemente vinha de vídeos que viralizaram primeiro no YouTube, onde foram impulsionados por algoritmos que favorecem o extremismo, como documentamos na matéria da semana passada.
Usuários do YouTube depois jogavam trechos desses vídeos para o WhatsApp, cujos usuários se viram, de repente, alimentados por notícias no serviço de mensagens de acordo com o que quer que fosse impulsionado pelo algoritmo do YouTube. Era como uma infecção pulando de um hóspede a outro.
E esses usuários do WhatsApp podiam compartilhar os vídeos, mas, porque o acesso à internet é muito caro ou por causa do analfabetismo, nem sempre estavam em condições de checar sua veracidade nem de buscar pontos de vista alternativos
“Apenas recebem informação, leem e repassam” disse Cordova. “É assim que funciona. Porque é muito caro pesquisar no Google.”
Isso poderia estar ocorrendo em uma escala larga o suficiente para causar impacto na política brasileira? Antes de ir ao Brasil para investigar, perguntamos a Virgilio Almeida, um cientista da computação da Universidade de Minas Gerais que, junto a uma equipe de pesquisadores, tem estudado o conteúdo de extrema direita no YouTube e no WhatsApp: o que as evidências mostraram?
Virgilio e sua equipe rastrearam dezenas de milhares de mensagens em centenas de grupos brasileiros no WhatsApp para procurar tendências que pudessem esclarecer essa questão.
Apesar de os pesquisadores não poderem saber quantos vídeos vieram do YouTube, descobriram que os usuários do WhatsApp enviavam links do YouTube mais do que de qualquer outro site — 10 vezes mais que do Facebook —, fundamentando a teoria de um fluxo direto entre YouTube e WhatsApp.
Juntas, as duas fontes de informação sugeriram que os vídeos do YouTube podem estar alcançando audiências enormes no WhatsApp no Brasil — particularmente entre os mais pobres e iletrados, que, para a surpresa de muitos dos observadores, passaram a apoiar Bolsonaro na última eleição.
As duas plataformas, combinadas, “transformaram-se em um portal para transmitir rumores, informações falsas, fake news”, disse Virgilio. “Esse é o panorama.”
Um porta-voz do WhatsApp disse que grupos públicos são minoria dentre as conversas no WhatsApp e, portanto, não seriam representativas. Informações corporativas internas, disse, indicam que brasileiros compartilham vídeos em uma proporção menor do que os usuários acompanhados por Almeida em sua pesquisa. Os grupos que a equipe de Virgilio Almeida examinou podem não ser representativos.
O porta-voz acrescentou que a empresa tem o compromisso de limitar a disseminação de desinformação, por meio, por exemplo, de políticas que restringem o encaminhamento de mensagens.
Shadloo, porta-voz do YouTube, disse que apenas 1% do tráfego do YouTube no Brasil veio do WhatsApp. Esse número não reflete os vídeos curtos que são reenviados ao WhatsApp como arquivos raw — uma prática comum no país, segundo pesquisadores e ativistas.
‘Assim que lançam um vídeo, nós começamos a receber ameaças’
Quando chegamos ao Brasil, estávamos ansiosos para entender se tudo isso acontecia, de fato, nas proporções que a pesquisa de Virgilio Almeida havia sugerido. E queríamos saber se, como no próprio YouTube, os vídeos que viralizaram no WhatsApp tendiam a ampliar o alcance de extremismos e de teorias da conspiração.
Em Maceió, cidade nordestina que esteve entre as mais atingidas pelo surto de Zika em 2015, nós vimos esse fluxo em ação. Em nossa segunda noite na cidade, conversamos com Dra. Brito, a psicóloga que trabalha com famílias afetadas pelo vírus Zika.
Naquele dia, nós havíamos assistido à Dra. Brito se encontrar com um grupo de mães com ZIka e tentar ao máximo rebater rumores que culpavam vacinas ou conspirações internacionais pela doença — e as mães repetidamente diziam que os encontraram no YouTube ou no WhatsApp.
Era quase meia-noite quando ela se sentou para falar conosco. Estava exausta depois de um dia tão atarefado que ela só pôde almoçar depois das nove horas da noite e tinha uma dor de cabeça latejante. Mas havia algo importante que ela queria nos mostrar.
Mexendo em seu celular, a Dra. Brito mostrou uma mensagem do WhatsApp que recebeu do pai de uma criança com microcefalia, uma consequência do Zika. Continha um vídeo editado a partir de outro, do YouTube, alegando que o vírus Zika havia sido disseminado pela Rockefeller Foundation como parte de uma conspiração para legalizar o aborto no Brasil. O pai exigia saber se era verdade.
Esse tipo de ocorrência havia se tornado algo normal, disse ela.
“O que acontece é que pegam pequenos trechos de um vídeo e esses trechos circulam por meio do WhatsApp”, disse. “O YouTube é uma ferramenta que as pessoas nem sempre acessam diretamente, mas elas clicam em um link para o YouTube se ele acaba aparecendo no WhatsApp.”
Os vídeos frequentemente são disseminados em grupos de conversa do WhatsApp feitos para compartilhar informações e notícias sobre como lidar com o ZIka, fazendo com que os esforços desses usuários pela saúde de suas famílias se virem contra eles mesmos.
“A primeira coisa que fazem é ir ao WhatsApp perguntar para outras mães e trocar informações dessa forma”, disse Auriene Oliviera, especialista em doenças infecciosas em Maceió.
“As mães se organizam no WhatsApp”, acrescentou, então a desinformação se provou particularmente viral ali.
Dra. Brito e suas colegas participaram de grupos de WhatsApp e tentaram derrubar as teorias, mas as dúvidas continuavam vindo.
As consequências poderiam ser severas não apenas para essas famílias em dúvida, mas também para a Dra. Brito e suas colegas.
Youtubers de direita haviam interceptado as já virais teorias conspiratórias do Zika, mas com um toque extra: alegaram que grupos de defesa dos direitos das mulheres haviam ajudado a forjar o vírus como uma desculpa para impor abortos mandatórios.
Dessa forma, os youtubers redirecionaram o medo dos espectadores à raiva, que apontaram para alvos preferenciais — como o grupo da Dra. Luciana Brito, que defendeu exceções na lei do aborto brasileira para mães com ZIka.
“Assim que eles lançam um vídeo, nós começamos a receber ameaças”, disse ela.
Ameaças haviam se tornado tão frequentes que a polícia preparou um canal especial para que ela e suas colegas pudessem denunciá-las. Luciana Brito afirmou que sua organização não queria abarrotar a polícia de denúncias, então reportaram apenas as ameaças especialmente graves — aproximadamente uma vez por semana, estimou.
Até mesmo algumas mães passaram a desconfiar dos grupos que as procuravam para ajudá-las.
“Essas mulheres estão muito vulneráveis. E, quando o Estado está ausente, as políticas públicas estão ausentes, é muito fácil para elas cair na armadilha de acreditar nessas teorias”, disse a Dra. Brito.
“O maior impacto é que essas mulheres param de acreditar na ciência”, disse. “O segundo é ódio.”
Acrescenta: “Então, tem muito desespero”.
‘Fiquei com medo de dar qualquer outra vacina para a minha filha’
Conhecer os usuários que receberam informações equivocadas pelo fluxo direto YouTube-WhatsApp tornou claro como cidadãos comuns são pequenos diante dessas plataformas.
Em sua casa, no dia seguinte, uma das mães que havia perguntado a Dra. Brito sobre vacinas, Gisleangela Oliveira dos Santos, disse: “Tudo o que você não sabe pode ser encontrado no YouTube”.
Três anos atrás, quando seu segundo filho recebeu o diagnóstico de microcefalia, informações eram escassas. Então, ela buscou cada migalha que podia, inclusive no YouTube.
Repetidamente, a plataforma apresentou a ela vídeos atribuindo o Zika a vacinas ruins ou a conspirações internacionais. Outras mães tiveram a mesma experiência e compartilharam seus achados por meio de mensagens de texto em grupos.
Alguns dos vídeos do YouTube foram feitos com o objetivo de se assemelharem a notícias ou orientações de profissionais da saúde. Os sistemas de recomendações continuam promovendo esses vídeos, segundo concluiu a análise de Harvard, mostrando-os em meio a orientações médicas mais respeitáveis, mas ainda como as primeiras recomendações no resultado da busca.
Um porta-voz do YouTube confirmou as conclusões, denominou os resultados de “não intencionais” e disse que a empresa mudaria a forma como sua ferramenta de busca fazia emergirem vídeos relacionado ao Zika.
Gisleangela sabia que a internet podia não ser confiável. E ela acreditava em vacinas: sabia que elas poderiam proteger crianças de doenças graves. Depois de assistir aos vídeos, porém, ela se sentiu paralisada pela dúvida.
Apesar de ter dado as primeiras vacinas, disse, “Fiquei com medo de dar qualquer vacina para a minha filha depois disso”. Ela e sua mãe também pararam de se vacinar.
Essa não foi a única questão sobre a qual o YouTube alterou sua forma de pensar.
Inicialmente, ela não apoiava Bolsonaro, disse. Mas seus amigos continuaram a enviar vídeos sobre ele. Então, ela foi ao YouTube para saber mais.
“Busquei e me convenci do que ele disse, o que mudaria e melhoraria”, declarou. “Isso me influenciou muito.”
Em outubro, ela votou nele.