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O corregedor nacional de Justiça, Luis Felipe Salomão, determinou a instauração de um processo administrativo disciplinar contra duas juízas e um desembargador do Piauí após identificar indícios de negligência e de omissão em um processo envolvendo o direito ao aborto legal.
Os três atuaram no caso de uma menina de 11 anos que engravidou duas vezes após estupro e teve o acesso ao procedimento negado.
Ao analisar a atuação dos magistrados, o corregedor do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) concluiu haver indícios de omissão e de prática de violência institucional por meio de abuso de autoridade. Os três serão mantidos em seus respectivos cargos durante a apuração dos fatos.
“A negligência e a omissão na condução do processo judicial pelos magistrados reclamados impossibilitou o atendimento médico imediato e desburocratizado que deveria ter sido oferecido à infante, de modo a evitar o prolongamento do seu sofrimento”, afirma Salomão.
A história da menina de 11 anos foi revelada pela Folha. Um ano depois de ter seu primeiro filho, fruto de um estupro, a criança foi novamente vítima de violência sexual e engravidou pela segunda vez. Ela deu à luz em março deste ano, aos 12 anos de idade.
A decisão da Corregedoria Nacional de Justiça pela abertura da investigação aponta que a manutenção da segunda gestação foi marcada por uma série de negligências em relação à criança, omissão na concretização do direito ao aborto legal e perpetuação do sofrimento da menina.
O caso chegou ao órgão por meio de reclamações e pedidos de providências apresentados por deputadas federais do PT, pela deputada federal Sâmia Bomfim (PSOL-SP) e por entidades, grupos e organizações como o Anis – Instituto de Bioética, Coletivo Advocacia Popular Piauiense e Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde.
Salomão, que é também ministro do STJ (Superior Tribunal de Justiça), analisou as condutas das juízas Maria Luiza de Moura Mello e Elfrida da Costa Bezerra, então titulares de varas da Infância e Juventude de Teresina, e do desembargador José James Gomes Pereira, do Tribunal de Justiça do Piauí.
A primeira magistrada, Maria Luiza, se declarou suspeita por “motivo de foro íntimo”. Antes, ela atendeu a uma demanda que requeria o acolhimento da garota por uma instituição especializada, mas não analisou um pedido de realização de aborto legal formulado pelo Ministério Público. De acordo com a Promotoria de Justiça, àquela altura a menina já havia expressado que não queria seguir com a gestação.
O corregedor nacional de Justiça aponta que a juíza segurou o processo por 21 dias antes de declarar suspeição, o que pode indicar “suposto retardamento e omissão” por parte da autoridade judiciária por não ter adotado, com urgência, providências em prol da criança vítima de violência.
Salomão ainda destaca que, em casos como o da garota piauiense, a realização da interrupção não requer autorização judicial, e o atendimento médico e psicológico deve ocorrer de forma mais breve possível.
Segunda juíza a assumir o processo, Elfrida da Costa Bezerra acolheu um pedido apresentado pela Defensoria Pública do Piauí para que o órgão fosse nomeado como defensor dos interesses do feto, algo que não está previsto na Constituição.
A magistrada também realizou uma oitiva da mãe da menina —que, assim como na primeira gestação, se posicionou contra a realização do aborto legal por sua filha— e voltou a tomar depoimento da vítima.
O corregedor afirma que a garota já tinha sido ouvida pela equipe técnica da Vara da Infância e manifestado seu desejo expresso pela interrupção. O fato de ela ter sido convocada a falar mais uma vez, segue, poderia configurar omissão, já que o encaminhamento médico e psicológico foi novamente adiado.
O corregedor diz ainda que o relatório sobre o grave sofrimento emocional enfrentado pela menina tardou a chegar aos autos, o que também poderia apontar indícios de omissão na adoção de providências.
Passados 23 dias desde a data em que assumiu o processo, a segunda juíza autorizou o aborto legal. Em novembro de 2022, no entanto, a Defensoria Pública do Piauí e a mãe da garota recorreram e pediram a reforma da sentença.
Dias depois, foi juntado aos autos um relatório que dizia que a menina tinha optado por seguir com a gestação para depois encaminhar o futuro recém-nascido à adoção.
Ao apreciar os recursos contrários ao procedimento, o desembargador José James Gomes Pereira proferiu uma decisão monocrática impedindo a realização do aborto. A menina, na ocasião, somava 12 semanas de gestação.
“O desembargador, igualmente às demais magistradas que atuaram no processo, deixou de adotar providências concretas no sentido da concretização pela infante dos direitos decorrentes da proteção e prioridade absoluta inerentes à condição de gravidez em consequência da prática de ato delituoso com violência presumida”, afirma Luis Felipe Salomão.
“Registre-se que a possibilidade de realização do aborto legal em decorrência da situação de gravidez envolvendo menina de 11 anos de idade independe não apenas de autorização judicial, como também de outros limites relacionados à idade gestacional ou ao peso fetal para a realização do procedimento”, destaca o corregedor.
Ao se manifestarem junto ao CNJ, as magistradas Elfrida Costa Belleza Silva e Maria Luíza de Moura Mello sustentaram que suas atuações deveriam ser apuradas pela Corregedoria-Geral do Piauí, não pelo órgão nacional, e negaram qualquer negligência ou omissão na condução do caso.
Já o desembargador José James Gomes Pereira afirmou que “não houve infringência disciplinar” e sustentou que “o direito pátrio já consolidou como função da Defensoria Pública a promoção da defesa do nascituro com base na teoria concepcionista”, solicitando o arquivamento da reclamação disciplinar.