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por Debora Diniz
Publicado originalmente na Carta Capital
“Aquela vagabunda, entendeu? Defensora de aborto, de gênero. Vagabunda. Mande pra ela me processar, que eu provo que ela é”. A fala é parte da transcrição feita a partir da gravação (autorizada) de um docente do curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), proferida após um debate sobre gênero na prática jurídica, da qual participou uma aluna minha. Dirijo a palavra a ele:
Professor,
Como o senhor, sou professora universitária há mais de duas décadas. Soube que ensina direito civil, essa área que abrange de propriedades a famílias. Nós dois formamos futuros juristas, delegados, advogados, juízes, promotoras ou promotores, mas também gente comum que move a justiça e a cidadania. Nossas semelhanças terminam aí.
Diferente do senhor, nunca desrespeitei estudantes em sala de aula, jamais desqualifiquei qualquer mulher como “bostinha” ou “sapatão”, não faço uso do grito para fazer valer o que deve ser só mais uma forma de pensar, e não a verdade absoluta.
Explico-me: sendo nós dois tão diferentes, por que lhe escreveria esta carta? Não nos conhecemos, esclareço, apesar de já conhecer sua voz de doutor. Sinto-me diretamente envolvida no abuso de poder e na virulência com que se dirigiu a uma das estudantes sob minha responsabilidade acadêmica na Universidade de Brasília, Sinara Gumieri.
Fui convidada pelo Centro Acadêmico de Direito da Universidade Federal de Rondônia para falar sobre gênero na prática jurídica. Não pude ir, a estudante me representou.
Como pôde ouvir e ver, ela é uma jovem mulher, brilhante nas palavras e no pensamento, não se acomoda com o que dizem as leis sobre quem pode receber o título de família, ou por que o aborto deve ser um direito das mulheres e não uma perseguição patriarcal aos úteros.
Sei que este último tema o provocou particularmente. Ouvi seu descontrole em sala de aula, logo após o evento, pois foi o senhor quem pediu que se gravasse o que diria sobre a palestrante.
Constranjo-me ao repetir suas palavras, mas a transparência dos fatos exige: “Aí, quando tocou no assunto do aborto, eu tive que me manifestar, eu soltei um peido, dei as costas e fui embora.”
A descreveu também como “vagabunda” e oradora de “ideologia de sapatão”. Estou surpresa por diversos motivos. Claro que o mais evidente é a sua pouca habilidade para a docência.
Já leu Paulo Freire? Pois deveria relê-lo várias vezes e depois retornar ao áudio que circula pelo país. Sua voz não é a de um professor que ensina, mas a de um ditador que determina; o professor abandonou-se à autoridade da moral que rejeita a diversidade, a divergência e a dúvida.
O senhor esqueceu que um professor ensina pela inteligência e não pelo grito. No seu discurso só havia brado – basta a lógica para saber o que faltou.
Suas primeiras palavras de indignação foram as seguintes: “ela é uma defensora do gênero, uma vagabunda”. Adiante, o senhor posicionou-se contra a “ideologia de gênero”, descrevendo-a como uma invenção de partidos políticos de esquerda.
Bem, um dos deveres de quem ensina é não só falar a verdade, como também estudar. E estudar muito, pois o que se espera de nós é sabedoria e não clichês; pesquisa e não conversa vulgar.
A ignorância é uma inimiga de quem ensina. Nossas alunas nos escutam porque estudamos muito sobre o que falamos. Não falo de sucessões em sala de aula; por que o senhor falou de gênero, se desconhece conceitos básicos? Seria por intolerância religiosa?
Preciso lhe dizer: não entendi e não gostei de suas piadas sobre “mulheres sapatões” que bisbilhotam outras mulheres no banheiro, ou sobre suas próprias genitálias.
Como o senhor seria reprovado em um curso de introdução ao direito, e consequentemente em um curso de gênero, sinto-me no dever de corrigi-lo. Gênero não é ideologia e menos ainda invenção do PT.
Se tivesse cursado algumas disciplinas introdutórias do departamento de sociologia ou antropologia teria aprendido alguns conceitos básicos, como a famosa frase de Simone de Beauvoir: “não se nasce mulher, se transforma”.
Sei que isso pode parecer terrível ou imoral para quem acredita que “as mulheres são inimigas entre si”, ou seja, para quem repercute fantasias misóginas sobre as mulheres em uma ordem patriarcal.
Mas não sou sua professora, e acredite, se fosse, não o reprovaria no curso de gênero, mas o mostraria como viver a sexualidade fora das normas heterossexuais – isso que descreveu como “sapatona muito doida” é só uma das formas de se viver a vida.
Minha carta é um apelo, senhor professor. Peço que outras professoras e outros professores do país ouçam a gravação de seus impropérios em sala de aula, para que avaliem melhor o impacto de suas palavras para jovens estudantes. Para terminar, queria lhe dizer que houve uma esperança no que escutei – a paciência e a tolerância de sua aluna.
A voz era de uma jovem mulher anônima que lhe interpelava no melhor estilo do método socrático. Diferente do senhor, ela não acredita que pode dizer o que quiser e como quiser. Ela segue regras importantes de civilidade e cidadania, como respeito às mulheres, aos grupos minoritários, à laicidade.
Ao fazer isso, ela foi a professora que ensina pelo testemunho. Se quer um julgamento, ela foi a vencedora do debate. Aprenda com ela; talvez o senhor se torne um professor melhor.
* O professor é Samuel Milet, da Universidade Federal de Rondônia. Aqui está o áudio a que faço referência e aqui está a petição iniciada por estudantes e outros professores da UNIR pela responsabilização de Milet pelo ocorrido, nas instâncias institucionais cabíveis: