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Publicado originalmente no Huffpost
A cena que eu imagino são de 10 mil prontuários sendo encaixotados. Alguns se rasgando, exames clínicos se perdendo, fichas de mulheres e memórias da intimidade escorrendo pelo chão para quem quisesse olhar. Uma lista de 10.000 nomes passeou por vários olhos e mãos – eram as mulheres atendidas pela clínica da Dona Neide em Campo Grande para aborto ilegal. Todas elas haviam já sido ali atendidas para fazer um aborto ou ser informadas sobre como fazê-lo.
A história cotidiana, do poder e das mulheres comuns, estava naqueles prontuários. D. Neide apareceu morta meses antes de seu júri, no que foi classificado como suicídio, mas com traços daqueles filmes de sumiço de arquivo vivo. Não conhecemos sua versão por trás das notas fiscais dos pagantes, dos segredos que guardou para que a clínica funcionasse sob a proteção de gente graúda. A clínica havia sido desbaratada e o escândalo do aborto movido uma das investigações mais cruéis e perversas contra as mulheres.
Para cada mulher que abortou na clínica da d. Neide houve um homem ao seu lado para a gravidez.
Na clínica de D. Neide gerações de mulheres do Mato Grosso do Sul foram atendidas. Contam que o segredo daqueles papeis eram tantos que nem em confessionário sagrado se conteria o poder do estrago. Era uma delação forçada mas que as vítimas eram as mesmas mulheres que, antes, haviam sentido medo e se escondido na clínica para o aborto clandestino. Mulheres vítimas da criminalização do aborto em dois tempos: ao expor o corpo à clandestinidade, ao serem expostas pelo poder policial.
Para cada mulher que abortou na clínica da Dona Neide houve um homem ao seu lado para a gravidez. Eles não existiam no arquivo, não foram perseguidos pela polícia, não responderam processo penal. Eram os homens que bradavam na política sobre o absurdo do crime de aborto. Os homens eram também de todo tipo – e batina, toga ou jaleco eram suas investiduras de poder para investigar cada uma das 10.000 mulheres.
Há exatos 10 anos a clínica de d. Neide foi “descoberta” e os prontuários foram devassados. Se aborto é crime para o Código Penal, abusar da intimidade das mulheres nos prontuários é crime ainda mais grave e sem contestação quanto a sua legitimidade. Nos papeis estavam segredos de violência, de vergonha, de intimidade sofrida que, muitas vezes, acompanha uma mulher ao fazer um aborto ilegal em uma clínica clandestina.
O relógio é contra as mulheres e foge de soluções covardes, como plebiscito ou o tempo da política legislativa.
Sobre a devassidão dos prontuários não houve processo judicial ou investigação policial. Foi parte de uma ação policial bem sucedida, talvez seja esse o resgate da história contada pelos homens de poder. Neste exato momento, o Supremo Tribunal Federal pode mudar definitivamente a memória deste passado – desde 8 de março quando a ação foi recebida, estima-se, com base nos dados da Pesquisa Nacional do Aborto, que 41 mil mulheres já fizeram aborto no Brasil. O relógio é contra as mulheres e foge de soluções covardes, como plebiscito ou o tempo da política legislativa. É decisão de intimidade e privacidade – é necessidade de saúde. Por isso, é matéria urgente para a corte suprema do País.