por Juliana Gonçalves e Helena Borges
Publicado originalmente no The Intercept Brasil
CRIMINALIZAR O ABORTO é inconstitucional? Esse é o questionamento da ação protocolada pelo PSOL no Supremo Tribunal Federal (STF) em março, em caráter liminar, configurando alta urgência. Relatora da peça, a ministra Rosa Weber pressionou, dando cinco dias de prazo — como manda a Lei 9882, que delimita os ritos de julgamento nesse tipo de ação — e é hora de os poderes Executivo e Legislativo se manifestarem sobre o direito de mulheres interromperem uma gestação. O cenário é de embate entre as forças progressistas e conservadoras em Brasília.
“A vida do nascituro deve prevalecer sobre os desejos das gestantes”, foi o que decidiu Michel Temer, segundo uma nota do jornal O Estado de S.Paulo. As respostas do Planalto e do Congresso servirão de base para a posição que o STF tomará sobre o assunto, em uma decisão histórica.
Além de Temer, a Câmara dos Deputados e o Senado também darão suas respostas, logo depois serão requisitadas a Advocacia-Geral da União (AGU) e a Procuradoria-Geral da República (PGR), que também terão mais cinco dias para responder. Apenas com as respostas de todos, a palavra final, ainda sem data marcada, virá da ministra Rosa Weber, relatora do caso, e de seus colegas em votação no tribunal.
Sempre visto sob perspectiva moral e religiosa, o debate sobre a descriminalização da interrupção da gravidez chega ao Supremo Tribunal Federal por meio de uma ação que questiona a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal.
Datado de 1940, o código determina até três anos de prisão para a mulher que realiza o procedimento. Dependendo da interpretação dada aos artigos, pode-se crer que eles vão contra os direitos individuais garantidos pela Constituição.
A ação, assinada por advogadas do PSOL e do instituto Anis – uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) – , é um xeque das instituições que lutam pelo direito de mulher escolher interromper uma gravidez. No Brasil, apenas 13% da população acredita que o aborto trata de uma questão de direito de escolha da mulher, segundo a pesquisa “Aborto” do Instituto Ipsos. A média mundial é de 46% das pessoas entenderem o aborto como decisão da mulher.
A advogada do PSOL Luciana Boiteux assina a peça ao lado de suas colegas Luciana Genro, também do PSOL, Gabriela Rondon e Sinara Gumieri, da Anis. Ela falou ao The Intercept Brasil por telefone, explicando o que levou a abertura da ação:
“Avaliamos que, como em várias outras cortes do mundo, era o momento de provocar o Supremo em uma ação mais ampla. Trata-se de uma pauta histórica do feminismo e avaliamos que o tema já estava amadurecido na Corte, vem sendo debatido desde a questão da célula tronco. Foi algo construído. Era algo que já estava acontecendo e, depois da ação do fim do ano passado, ganhamos mais força para o debate no STF.”
Em novembro de 2016, a Primeira Turma da Corte revogou a prisão de cinco médicos, pacientes e funcionários de uma clínica clandestina do Rio de Janeiro. Em seus votos, dois dos cinco ministros que compõem a turma — Luiz Fux e Marco Aurélio — aprovaram o habeas corpus apenas para aquele caso específico, preferindo não entrar em detalhe sobre a legalização do aborto nos três primeiros meses de gestação. Já os ministros Roberto Barroso, Rosa Weber e Edson Fachin falaram abertamente sobre a necessidade de se debater a inconstitucionalidade dos artigos do Código Penal.
Para Rodrigo Costa, professor de Direito Penal na Universidade Federal Fluminense (UFF), a pauta serve para mostrar que o Judiciário está à frente do Legislativo em termos de liberdades individuais:
“No voto do ministro Barroso vimos que ele parece ter uma posição mais progressista sobre o assuntos. Alguns ministros anunciaram que essas criminalização fere os direitos fundamentais das mulheres. O STF tem dado algumas pistas de um entendimento progressista que no nosso Congresso Nacional parece inviável.”.
Em seu voto, Barroso defendeu que a criminalização do aborto até o terceiro mês de gestação é inconstitucional e afirmou que “a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais (problemas de saúde pública e mortes) superiores aos seus benefícios”.
A legalização, no entanto, não é consenso na Corte. Em 2012 e 2016, ministros se manifestaram contra. “Retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto da Rocha Tarpéia, ao arbítrio de alguns, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”, argumentou o ministro Ricardo Lewandowski em seu voto contra a interrupção terapêutica de gestações em caso de anencefalia.
No Brasil, o aborto hoje só é permitido em casos de anencefalia do feto, de estupro, ou quando a gestação representa risco para a vida da mulher.
“Não cabe ao direito analisar questões morais e religiosas.”
Para o professor Costa, o aborto é pouco debatido no Brasil: “Quando se vai discutir a legalização, as pessoas fogem do assunto e debatem a moral. Não cabe ao direito analisar questões morais e religiosas. O direito deve analisar em que medida a criminalização do aborto deve ocorrer”.
A fala do especialista remete ao voto do ministro Luiz Fux no julgamento do caso que legalizou a interrupção terapêutica de gestações de fetos anencéfalos: “o aborto é uma questão de saúde pública, não é uma questão de Direito Penal”.
O ministro Edson Fachin usou a religião para embasar seu voto contra a criminalização, no fim de 2016:
“E concluo, embora seja apenas uma nota a latere, senhor presidente, para registrar que nesta semana, à página 44 da revista Carta Capital, há uma notícia da Carta Apostólica “Misericordia et Misera” do Papa Francisco, onde se acentuou a possibilidade de absolvição sinalizada pelo Pontífice jesuíta, que alcança mulheres e profissionais da saúde que porventura tenham alguma participação na interrupção de uma gravidez após a confissão.”
Diante do conservadorismo observado no Congresso atual, a estratégia do instituto Anis foi procurar o PSOL que, por ser um partido político, poderia propor a ação conjunta, levando a discussão diretamente ao STF.
Outro partido político partiu da mesma premissa para fazer oposição à legalização dentro da ação: o PSC pediu para também ter palavra dentro dos trâmites. A ministra Rosa Weber ainda deve decidir se aceita ou não. O partido faz parte da bancada religiosa, ala mais conservadora do Congresso.
A decisão tomada pela Corte tem o poder de mudar o jogo porque os demais juízes seguem as decisões tomadas pelo STF. Para Costa, caso se mantenha a criminalização, a primeira consequência seria política: “o debate iria perder força na opinião pública”. O professor explica que o Supremo até poderia rever a decisão posteriormente, mas dependeria de uma recomposição e de novo alinhamento de pensamentos políticos.
Com justificativas semelhantes aos da ação levantada, outra pauta “irmã” corre no STF: sobre a descriminalização do aborto em casos de Zyca. A peça deveria ter sido julgada em dezembro do ano passado, mas teve o julgamento adiado sem previsão de nova data. O texto alega que a descriminalização do aborto é uma medida de proteção da saúde, inclusive mental, e do direito à autonomia reprodutiva da mulher.
Já a ação protocolada pelo PSOL e pelo instituto Anis tem caráter amplo e se adequa a qualquer tipo de gestação. Para o professor Costa, a medida é “uma bala de prata”. Ele explica: “ou resolve numa tacada só essa questão sensível e que afeta as mulheres, ou pode ajudar a perpetuar o problema”.