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Publicado originalmente por HuffPost Brasil, em 23 de maio de 2016.
Nem crack ou aborto são mazelas, senhor ministro Ricardo Barros.
Fui ao dicionário para discordar de sua frase de efeito ou bem pensada – mazela é ferida, falha moral, pode ser algo que aflige, ou até mesmo sinônimo de pobreza. Se estiver certo em algum dos sentidos de tamanha palavra multiuso seria porque quis dizer que há aflição de pobres tanto na ilegalidade do aborto quanto no uso do crack?
Não sei se como engenheiro já visitou as fronteiras urbanas da Cracolândia em São Paulo ou se como Ministro da Saúde já ouviu histórias de mulheres pobres que fazem aborto na ilegalidade. Se não, ofereço meu testemunho para ajudá-lo a pensar em outras palavras para descrever as consequências da ilegalidade do aborto e do crack no Brasil – quem sabe, “escândalo de saúde pública”, ou, talvez, “emergência de saúde pública”? Se preferir palavras mais da ordem constitucional e secular, uma ideia seria falar do aborto e crack como graves “violações de direitos humanos”.
Passo ao meu testemunho.
Passei semanas perambulando na Cracolândia de São Paulo para um filme documentário sobre a vida de gente que tem a rua como teto. Conheci histórias de pessoas que descreveria como sendo gente refugiada da vida – essa gente tem coisas em comum: são pessoas abandonadas na rua, já foram habitantes compulsórias de hospícios, manicômios judiciários, unidades socioeducativas e presídios. Nenhum deles é lugar bom ou feliz, todos com grades e força na porta para garantir que nós, o povo do lado de fora, acreditemos na segurança.
Se tentar passear por ali, senhor Ministro, recomendo buscar por “Zumbilândia” no mapa digital, pois é assim que o lugar foi registrado. Humanos zumbis não é lá um jeito muito honroso para descrever gente que insiste em sobreviver, apesar de nosso intenso esforço em esquecê-los: “nosso”, explico-me, é para não ser tão indelicada ao me dirigir a quem é o maior responsável por cuidar de quem vive na rua, sem roupa ou banho, à espera de cuidado e garantia de direitos. Chamá-los de mazelentos não me parece um bom início de conversa, até mesmo porque ali transita gente braba e atenta a como cuidam do que eles tanto precisam. Por favor, não entenda isso como ameaça, é só mesmo para dividir o que aprendi como uma antropóloga na Cracolândia.
Já ouvi centenas, milhares até, não exagero, lamentos de mulheres que fizeram aborto. As histórias são singulares, há quem diga “cada caso é um caso”, mas elas são tão parecidas que deixo isso de caso individual de lado e prefiro falar em saúde pública. Quem são elas, senhor Ministro? Uma multidão de mulheres, iguais à mim e às mulheres de sua família, iguais a todas as mulheres que nos rodeiam no país. Uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto. Não creio que sejam bons modos para um governo que já nos brindou com adjetivos como belas, recatadas e do lar, agora nos descrever como mazelentas porque fazemos aborto em situações desesperadas da vida. Se precisa de adjetivo, ofereço um apropriado para o que se passa com as mulheres na clandestinidade do aborto, “abandonada”: são mulheres abandonadas pela ilegalidade.
É, o senhor pode fazer muito, mas não tem isso de conversar com religiões sobre aborto – se as mulheres quiserem, há dezenas de templos, terreiros ou igrejas para acolherem seus medos. Algumas não querem saber de nada disso de além-mundo, só querem viver sem medo. Por isso, sabe o que o senhor precisa fazer? Me perdoe a impertinência de lhe dirigir palavra tão imperativa, mas é que as vezes há tanto o que aprender em tão pouco tempo no poder que desejo mesmo oferecer conhecimento acumulado pelo feminismo: comece a anunciar, “o aborto é uma questão de saúde pública”, “nenhuma mulher deve ser presa por fazer um aborto”, “é preciso revisar a legislação proibitiva sobre aborto”. Com quem conversar? Com as mulheres, claro, mas comece com as comuns, aquelas que lhe servem café todos os dias (mas cuide, por favor, de não confundir senadora com a gentil senhora que lhe serve), ou aquelas que cuidam das crianças de sua família.
Sou pesquisadora, me perdoe o esquecimento. Sou pesquisadora feminista, ou, melhor dito, uma amadora engajada como gosto de me apresentar. Sugiro algumas perguntas como pesquisadora, caso decida visitar a tensa Cracolândia ou conhecer histórias de aborto das mulheres que sobrevivem lhe servindo: comece com questões genéricas – quem é você, como vive ou viveu, por que chegou aqui na rua fria e sem teto, ou por que sentiu necessidade de fazer um aborto? Essas são perguntas básicas mesmo, daquelas de treino inicial para tornar-se pesquisador – conhecer quem são as pessoas e suas razões para, só depois, arrojar-se a representá-las em suas necessidades de saúde.
Estou confiante, senhor Ministro, que como engenheiro o senhor acredita na ciência dos números e na sabedoria acadêmica. Saberá que necessidades de saúde não se estabelecem por crenças morais ou religiosas, por dogmas de fé ou autoridade, mas por evidências e provas científicas. Por isso, não se esqueça: uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez, pelo menos, um aborto.
O senhor conhece cinco mulheres, escute com atenção suas histórias de aborto, pense-se como uma autoridade da saúde brasileira, cujo dever é proteger necessidades. Chegará à mesma conclusão de milhares de cientistas em saúde pública: não há outra saída para essa conversa política senão descriminalizar o aborto.
Mas me permita uma última pergunta, se é tão simples entender, por que o senhor inaugurou sua conversa de autoridade anunciando escuta aos homens das religiões?
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