Por Maria Carolina Trevisan
Publicado originalmente no site Universa do Uol
O que mais chamou a atenção na sessão do Senado argentino que aprovou nesta quarta (30) o direito ao aborto voluntário, realizado pelo sistema público de saúde, com segurança e acesso gratuito, foi a qualidade do debate. A decisão é histórica e protege as mulheres mais vulneráveis.
“O aborto é uma realidade. Mata as mulheres [se realizado] na clandestinidade. A alternativa é aborto legal ou aborto clandestino”, afirmou a senadora Norma Durango, na abertura da reunião. Ela defendeu que o procedimento de interrupção da gravidez até 14 semanas de gestação deve ser feito de maneira regulamentada, “com um Estado presente, que a acompanhe, que não a obrigue a estar sozinha em uma situação absolutamente traumática” como é um aborto. “A maternidade não pode ser forçada.”
O respeito e a maturidade com que se abordou uma pauta essencial para os direitos das mulheres no Parlamento da Argentina contrasta profundamente com a postura de autoridades do Brasil. Por aqui, não só regredimos como avançamos na direção oposta. A ascensão de Jair Bolsonaro (sem partido), com Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, Saúde e Direitos Humanos e general Eduardo Pazuello no comando da Saúde, corremos o risco de perder inclusive os direitos conquistados (o aborto é legal em caso de risco à vida da mulher, anencefalia e quando a gestação é resultado de estupro).
Em 2020 assistimos à condenação pública de uma criança de 10 anos, vítima de violência sexual, que exerceu o direito ao aborto. Damares diz que não interferiu para frear o procedimento, mas foi ela quem levou a público algo tão delicado como a gravidez fruto de estupro de vulnerável. A conhecida e propagada postura antiaborto da ministra estimulou a militante de extrema-direita e ex-funcionária do ministério, Sara Giromini, a divulgar a identidade da menina e o local onde o aborto aconteceria, provocando tumulto diante do hospital. Pessoas chamaram a criança vítima de “assassina”, inclusive com a anuência de deputados que tentaram invadir o hospital, como mostrou a coluna.
Dias depois, tanto Damares quanto Pazuello garantiram, ao lado do presidente da República, que o governo é antiaborto. Por um lado, Damares reafirmou que o MDH defende “a vida desde a concepção”, por outro, Pazuello tentou passar uma portaria que dificulta o acesso ao aborto legal nos hospitais brasileiros. Misturam religião e crenças pessoais com acesso a direitos e à saúde pública. Ignoram que o aborto clandestino é uma das principais causas de morte materna no país.
Nos meses que se seguiram, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, se juntou à cruzada antiaborto empreendida no país por seus colegas e levou ao âmbito internacional uma parceria com o governo Trump pelo cerceamento do direito das mulheres ao aborto. Usam um conceito particular de “família” para justificar suas posições. Retrocesso visto pelo mundo todo. Um componente a mais de autoritarismo explícito. O Comitê de Direitos Humanos da ONU preconiza que os Estados-partes devem “priorizar a prevenção à gravidez não desejada mediante o planejamento familiar e a educação social e reduzir as taxas de mortalidade derivadas da maternidade, por meio de serviços de maternidade sem risco e assistência pré-natal. Na medida do possível, deverá ser alterada a legislação sobre criminalização do aborto, de forma a abolir as medidas punitivas impostas a mulheres que tenham sido submetidas a abortos”.
Atualmente, o aborto é definido como crime contra a vida no Código Penal. O artigo 124 se aplica à gestante. Prevê pena de detenção de 1 a 3 anos para a mulher que realizar o autoaborto ou que consentir na realização do aborto. Um terceiro que provocar o aborto com o consentimento da gestante também está sujeito a pena de reclusão, de 1 a 4 anos (art. 126). Se não houver consentimento, o autor tem pena prevista de 3 a 10 anos (art. 125).
Em 2018, quando o Supremo Tribunal Federal começou a discutir a descriminalização do aborto, a então presidente do STF, Carmen Lúcia, afirmou: “não há bem jurídico a ser tutelado pela norma penal que possa justificar a impossibilidade total de a mulher fazer a escolha sobre a interrupção da gravidez”. O Supremo não decidiu ainda sobre a questão. Enquanto isso, um milhão de abortos ocorrem todos os anos no país, segundo dados divulgados nessa audiência pelo Ministério da Saúde em audiência pública para debater a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), proposta em março de 2017 pelo PSOL em conjunto com o ANIS – Instituto de Bioética, que requeriam a descriminalização da interrupção voluntária da gestação até a 12ª semana.
Além da descriminalização, estamos longe de achar saídas para mortes evitáveis, caso o aborto fosse regulamentado, como na Argentina. Por aqui, andamos para trás. “Me dei conta de que não se trata de mim, das minhas crenças ou formação, mas é algo que compete às mulheres”, afirmou o senador Sergio Leavy, da Frente de Todos, que há dois anos votou contra a legalização do aborto voluntário. “Essa lei não promove o aborto, apenas dá um marco seguro para que não morram na tentativa. Se meu voto faz com que uma mulher não morra por aborto, então o farei”, disse, mesmo em visível incômodo.
A democracia é isso: propõe a necessidade de zelar pelo bem comum, mesmo que contrarie crenças pessoais.
A Argentina iniciou também nesta terça (29) a vacinação contra a covid-19. Direito à vida.