por Alexandre Santos
Especial para o Correio
Ângela não tem pai nem mãe. Vez por outra, sente-se como se nunca houvesse existido. Certa feita, indagou-se: “Se eu não tivesse nascido, será que seria a mesma coisa?”. Diante de tais incertezas, até se acha boba. E chega a pensar: “Será que estou pirando?”.
Aos 16 anos, a adolescente cheia de dúvidas comuns à idade aprendeu a botar os sentimentos no papel. Em português de dialeto próprio, mas claro o suficiente para externar alegrias e tristezas, Ângela escreve poemas.
No dia em que rascunhou alguns versos nos quais questionava a própria existência, mal poderia imaginar que se tornaria uma das protogonistas de uma iniciativa que tem ajudado a transformar o cotidiano de jovens garotas em conflito com a lei.
Trabalho que tem à frente pesquisadoras e estudantes de pós-graduação e graduação da Universidade de Brasília (UnB), o projeto Traços e Letras da Cadeia de Papel busca, por meio da literatura e da escrita, dar voz a jovens internas na Unidade Socioeducativa de Internação de Santa Maria, a única que atende ao gênero feminino no Distrito Federal.
Sob a perspectiva que visa entender a realidade desse público, a iniciativa surgiu em uma das visitas de campo realizadas por uma das pesquisadoras, em janeiro do ano passado.
Desde então, o que era apenas objeto de estudo se transformou em saraus literários, ocasiões em que as garotas compartilham experiências acerca do que leem e escrevem durante a rotina reclusa.
“Todas querem falar, ser ouvidas, escrever, trocar ideias sobre livros e romances. Já havia um projeto de leitura na unidade, um carrinho que circula pelos corredores entregando e recebendo livros. Não inovei no que já existia. Só introduzi literatura. Isso foi uma pequena novidade em uma cultura de leitura que me antecedia”, explica Débora Diniz, professora da Faculdade de Direito da UnB e idealizadora do projeto.
No início, sua intenção era estar ali somente para ouvir histórias. Mas descobriu nos encontros a oportunidade de descortinar o universo da literatura.
Cadeia de papel
Os livros, segundo conta, surgiram naturalmente, nas primeiras visitas, quando se apresentava às meninas. “Eu ainda não tinha um jeito certo de fazer as apresentações, pois o primeiro encontro importa muito. Dizia: ‘Eu sou professora, pesquisadora, vim para escrever um livro por aqui’. Uma das meninas, habitante antiga, me perguntou: ‘A senhora me traz um livro para eu ler?”. Na semana seguinte, levei um livro, Enterro Celestial, da chinesa Xinran, e assim começamos”, detalha a pesquisadora.
Ao examinar o comportamento das garotas e, sobretudo, da estrutura que lhes serve de abrigo, Débora voltou sua atenção para um detalhe: a nomenclatura do lugar destoa bastante da realidade a que se propõe.
“A torre alta, o arame farpado que, para a polícia, recebe o nome de concertina, os muros altos. Eles me mostravam que o lugar desafiava o título que a placa de chegada dá como nome: Unidade Socioeducativa de Internação. Educação parece que ficava escondido. A torre e os muros me lembravam ser aquilo um presídio. Unidade Socioeducativa de Internação é o nome oficial para onde vão as meninas e os meninos infratores. Em termos vulgares, adolescentes bandidos”, descreve.
“Rapidamente, aprendi que esse nome é pomposo. Tinha outro nome para as meninas que ali vivem: Cadeia de Papel. E esse é o nome certo para aquilo que não há um projeto ainda de cadeia verdadeira, que alguma coisa resiste a dizer que ali habitam meninas e meninos”, acrescenta a professora, referindo-se à epígrafe de tom mais leve que adotara para a pesquisa.
Débora Diniz atua na unidade em regime de plantões, intervalados a cada três dias: “Estou ali para estadias frouxas para uma verdadeira plantonista. Mas uma vez por mês puxo hora do plantão e permaneço vinte e quatro horas.Visto preto e perambulo entre barracos e módulos com meu caderno de notas.”
Vivências
Nos saraus, as cerca de 20 meninas — número que depende do fluxo de entrada e saída na unidade — escrevem cartas, bilhetes e comentários sobre o que leem. Discutem temas variados, como solidão, tédio, saudade da família, amores, inquietações com o futuro, lembranças da rua, resistência à rotina da cadeia de papel e amizades.
Não há preferências quanto a autores ou gêneros específicos. Há gosto por romances juvenis, histórias policiais, literatura de prisão e livros sobre mitologias. Para uma das garotas, Agatha Christie é a favorita; para outra, José Saramago ou Franz Kafka. Muitas odeiam livros de autoajuda; outras adoram.
A julgar pela vida que levavam, contudo, não raro evocam vivências permeadas em precarizações e abandonos anteriores à cadeia de papel, a exemplo de histórias de uma infância pobre, na periferia.
“Quase todas são sobreviventes de violência doméstica ou sexual. Muitas enfrentam longos meses sem visita, sem notícias da família e amigos. Mas eu não simplificaria essas trajetórias em algo como ‘falta de estrutura familiar’, visto que isso é uma saída fácil e falsa para um problema complexo, que tende a culpabilizar mulheres, as mães, em um sistema injusto de distribuição de tarefas de cuidado, além de tirar as falhas do Estado e da falta de proteção social de cena”, salienta Débora.
Embora a maioria das garotas tenha deixado os estudos no meio do caminho, não existem barreiras para a troca de experiências.”Os níveis de escolarização são muito diferentes entre elas, mas a variedade de leituras e de formatos de escrita, como cartas, poemas, e até rap, ajudar a acolher muitas mesmo assim. Algumas meninas escrevem menos, o poder da palavra é outro, expressam-se em linguagem própria. Mas querem falar, expor, contar o que sentem. O gravador foi introduzido por vontade própria daquelas para quem a voz é mais potente que a caneta”, afirma.
À medida que os encontros se sucedem, as produções surgem em profusão. “Já houve mais de 90 cartas em uma semana. Também há bilhetes e desenhos no meio, mas há escrita sentida e vivida. Estamos perto de 500 cartas”, enumera.
“A iniciativa de Débora Diniz nos faz entender de forma qualitativa esse cenário complexo em torno das meninas que praticam ato infracional. Ou seja, passamos a trabalhar a questão da responsabilização sem perder de vista o aspecto socioeducativo dessas jovens, que encontraram na literatura um novo caminho em suas vidas”
Douglas Gomes, da Secretaria da Criança
Homenagem premiada pela Unesco
A adolescente A.B., que integra o Traços e Letras da Cadeia de Papel, venceu um concurso de cartas sobre o Dia dos Professores promovido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco). No texto, ela homenageia Débora Diniz ao ressaltar a grandeza da iniciativa da professora.
Com o tema O que faz do meu professor um herói?, a redação da jovem de 18 anos superou outros 500 trabalhos inscritos na competição. A entrega do prêmio ocorreu em novembro.
O especialista socioeducativo Douglas Gomes, da Secretaria da Criança, diz que a iniciativa tem ajudado o DF a pôr em prática medidas que, embora previstas na legislação brasileira desde a criação do Estatuto da Criança e do Adolescente, em 1990, só avançaram com a implementação de outro dispositivo cerca de uma década depois.
“O Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo(Sinase), instituído em 2012, veio para regulamentar a execução de trabalho socioeducativo que visa a responsabilização do adolescente de forma criativa. A iniciativa de Débora Diniz nos faz entender esse cenário complexo em torno das meninas que praticam ato infracional. Ou seja, passamos a trabalhar a questão da responsabilização, sem perder de vista o aspecto socioeducativo dessas jovens, que encontraram na literatura um novo caminho em suas vidas”, avalia.
Matéria publicada no jornal Correio Braziliense em 08.01.2015, página 26.