A saída de Ela Wiecko não causa vergonha, mas empossa uma heroína, de Debora Diniz
Publicado originalmente por HuffPost Brasil em 1º de setembro de 2016.
Dra. Ela Wiecko é mulher discreta, quase tímida. Engana-se quem a imagina frágil: sua potência está em sala de aula ou em uma comunidade indígena, na luta pelo fim do trabalho escravo ou na defesa pela lei do feminicídio. É pesquisadora, uma intelectual orgânica, descreveriam alguns. Foi vice-procuradora geral da república – afastou-se do cargo na véspera do novo dia 31 da história política do País. Um prelúdio de que o novo tempo não a teria como uma das raras mulheres no topo do poder político.
A controvérsia foi tola, se não fosse uma pista sobre os riscos do novo tempo. Dra. Wiecko foi fotografada em um evento acadêmico no estrangeiro: seu rosto não se esconde nos óculos escuros, suas mãos seguram uma faixa “Fora Temer. Contra o golpe”. Não havia nada de proibido na cena: dra. Wiecko é procuradora da república, mulher independente no pensamento e bem treinada para saber que suas posições políticas não se confundem com o seu senso de justo. É também uma professora universitária, livre para expressar-se sobre a ordem jurídica ou política. Há liberdade de expressão política, intelectual e de cátedra na mensagem. Só isso.
Os torquemadas de plantão viram mais: sustentam haver incompatibilidade entre o cargo de vice-procuradora geral da república e a liberdade de expressão política. Dra. Wiecko não estava na segunda cadeira mais prestigiosa do Supremo Tribunal Federal com uma faixa “Fora Temer”: esse, sim, seria um gesto incompatível e, até mesmo, deselegante. Não fui sua aluna, apesar de me considerar uma aprendiz de como pensa e se move na política, por isso a conheço o suficiente para afirmar: a mulher sabia exatamente o que fazia. E, ao contrário do que pensam os recém-empossados da probidade administrativa, sua saída não causa vergonha, mas empossa uma heroína.
Há quem diga que dra. Wiecko foi “exonerada” do cargo; outros, que afastou-se por vontade própria. As duas narrativas são a mesma – o novo tempo perseguirá os pensadores livres, os que resistem a formas estranhas de dominação. Se foi mesmo exonerada, temos uma prova de que a liberdade de expressão está ameaçada; se afastou-se por pressões internas, o mesmo sinal grita, porém de forma cínica. Por isso, prefiro descrever de outro jeito o anúncio de véspera de dra. Wiecko: um gesto de clarividência. A partir do novo 31, o governo Temer não a teria nas estatísticas demulheres no topo do poder. Só vejo coerência ética em seu afastamento ter sido na véspera do 31. E repito: são os torquemadas quem criam as heroínas.
Sem dra. Wiecko no poder, o novo presidente cresceu em problemas de representação das minorias. Temer explicou-se em entrevista recente que selecionou sua equipe dos altos escalões por mérito e não por serem burocratas distintos pelo sexo ou cor. Nesse raciocínio estreito sobre como se arruma pensamento e representação na vida comum, um homem teria mérito suficiente para falar de questões de violência contra as mulheres tanto quanto dra. Wiecko. Queria dizer, além de primeiramente, fora Temer, que o senhor presidente está muito errado. A saída de dra. Wiecko deixou um vazio – não só biográfico de uma personagem insubstituível na trajetória longa e rara de mulheres em carreiras de poder, mas de agendamento de questões políticas que nós, outras mulheres, reconhecemos como legítimas. Assim, segundamente, agradeço por terem permitido que dra. Wiecko ficasse ainda mais livre para não representar o Brasil após o segundo 31 de sua história.