Esta parece ser uma daquelas estatísticas que não sei bem como foi feita, mas estou aqui para repetir: a Bíblia é o livro mais vendido do mundo. Depois dela, a saga O Senhor dos Anéis e O Pequeno Príncipe. Bem, só essa lista de best-sellers já diria muito sobre a humanidade leitora, mas minha inquietação aqui é outra. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro considerou inconstitucional a lei estadual que obrigava as bibliotecas das escolas públicas a terem um exemplar da Bíblia em seus acervos. O que poderia ser apenas um reconhecimento das preferências leitoras da multidão foi interpretado como uma violação da laicidade e da impessoalidade do Estado. Preciso confessar: gosto muito da interpretação do tribunal.
As bibliotecas são espaços democráticos, é verdade, mas não é qualquer livro que se guarda em uma estante. Para cada livro exposto, há uma curadoria de conteúdo que respeita o perfil dos usuários. A Bíblia é daqueles livros que ganha destaque em qualquer biblioteca, por isso nem precisaria reclamar o direito de presença. A novidade veio quando uma lei determinou presença compulsória — do livro da multidão e mais vendido, passou a ser livro obrigatório nas estantes das escolas públicas. O dever da presença é que incomodou os julgadores: por que seria a Bíblia o livro obrigatório e não a Constituição Federal? Ou, se a regra fossem as preferências da multidão, por que não seria também O Senhor dos Anéis? Até arrisco imaginar que a juventude das escolas preferisse o segundo mais cotado ao livro religioso.
A resposta foi antecipada pelos julgadores da inconstitucionalidade: a escolha da Bíblia não se baseia em critérios de necessidades de aprendizado, mas em uma colonização da biblioteca da escola por interesses religiosos. Em termos simples, a lei é inconstitucional porque viola a laicidade do Estado. Um Estado laico não é um governo ateu ou de perseguição religiosa; é, ao contrário, um governo da diversidade de crenças. Religiosos e não religiosos poderão conviver protegidos em suas formas de crença. Nesse modelo de governo do espaço público em que religiões devem ser respeitadas, mas remetidas à vida privada dos indivíduos, as escolas são permanentes locais de disputa.
A escola pública é uma instituição fundamental para a promoção da cidadania. Livros religiosos são formas legítimas de divulgação de valores do bem viver, mas a linguagem não é a mesma adotada por um Estado laico. Talvez, onde o livro religioso fala em salvação, a ordem constitucional fale em igualdade; onde se determina o justo pelo dogma, o princípio constitucional anuncie a liberdade. Esses não são apenas jogos de linguagem, mas diferentes concepções sobre o espaço público e a vida coletiva. A Bíblia como livro obrigatório nas estantes das escolas públicas anuncia um lugar diferente para as religiões — da vida privada dos indivíduos e suas famílias para o currículo das escolas. Um deslocamento injusto, se posso traduzir os termos jurídicos da decisão em princípios éticos.
É assim que se sustenta a inconstitucionalidade de um livro religioso como obrigatório nas bibliotecas das escolas públicas — para que um livro alcance tamanho status de dever de presença, importa escavar as razões. Livros fundamentais e obrigatórios para as escolas públicas são aqueles avaliados pelo Ministério da Educação, recomendados por especialistas para a formação de uma criança em um adulto comprometido com a cidadania. A inconstitucionalidade da lei não está no mérito do livro ou no direito de crença de cada indivíduo, mas na imposição de que uma obra religiosa seja fundamental para a cidadania em um Estado laico.
Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga a página da Anis no Facebook.
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Autor: Debora Diniz