Também usada como referência na Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, a norma técnica de Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Seuxal Contra Mulheres e Adolescentes, do Ministério da Saúde, diz que o médico deve assinar um parecer técnico “atestando a compatibilidade da idade gestacional com a data da violência alegada, afastando a hipótese da gravidez decorrente de outra circunstância diferente da violência sexual”.
Outra norma técnica, sobre Atenção Humanizada ao Abortamento, do Ministério da Saúde, também recomenda que o médico assine o atestado de compatibilidade da idade gestacional com a data referente à violência para as situações de aborto legal em decorrência de estupro.
O Ministério da Saúde informou que as normas técnicas citadas pela reportagem são as últimas que estiveram em vigência, porém estão desatualizadas e em processo de revisão.
Ambas diretrizes esclarecem que “os profissionais de saúde não devem temer possíveis consequências jurídicas, caso revele-se posteriormente que a gravidez não foi resultado de violência sexual”. A orientação leva em conta o Art. 20, § 1º do Código Penal: “é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima”.
“É possível que a mulher se engane sobre datas e que, dentro de um certo lapso, confunda e sobreponha memórias. A idade gestacional também é uma estimativa, não é uma data extremamente precisa. É preciso que a equipe multidisciplinar tenha essa flexibilidade no atendimento à mulher”, alerta Rondon.
O Ministério da Saúde afirmou que o direito ao aborto “deve ser conhecido por toda a rede de saúde e informado pelos profissionais às pessoas nos territórios” e que “meninas de até 14 anos são consideradas vulneráveis e é dever dos estabelecimentos garantir o direito ao aborto a todas as pessoas que vivenciam gestação nas condições previstas na lei e decidem pela interrupção.”
Segundo Januário Lacerda, a Defensoria Pública não costuma ser demandada para intervir no acesso ao serviço do aborto legal em casos de meninas menores de 14 anos. Ele acredita que isso ocorre porque o direito não é de conhecimento das vítimas ou de seus familiares.
“O que a gente observa é a falta de informação. O estado não divulga esse tipo de serviço, as pessoas que são envolvidas no acolhimento já têm uma pré-disposição contra o aborto e não dão essas opções para a vítima”
A Secretaria de Estado da Saúde de Roraima (Sesau/RR) informou que os casos que ingressam no Hospital Materno Infantil Nossa Senhora de Nazareth para atendimento entre 20 e 22 semanas devem ser rigorosamente avaliados, considerando a possibilidade de erro de estimativa da idade gestacional.
A Sesau/RR afirmou ainda que os dados relacionados à apresentação de Boletim de Ocorrência para interrupção da gravidez são sigilosos. A secretaria não confirmou o número exato de profissionais que atuam no serviço de aborto legal, nem comentou sobre os dados levantados pela reportagem, sobre o caso da imigrante que precisou apresentar BO para realizar o aborto legal ou sobre a declaração da médica que afirmou ter desencorajado pacientes a realizarem o procedimento.
Maternidade funciona em estrutura precária
Todos os procedimentos de aborto legal em Roraima são realizados no Hospital e Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, que desde junho de 2021 faz os atendimentos de forma precária na estrutura de lona do antigo hospital de campanha montado durante a pandemia para atender pacientes de Covid-19.
A equipe designada para os atendimentos de aborto legal é composta por, pelo menos, sete médicos, além de enfermeiros, assistentes sociais e psicólogos, segundo Ilda Mani Isaquir, que integra o time.
Para a ginecologista e obstetra Eugenia Moura, presidente da Associação de Ginecologia e Obstetrícia de Roraima e plantonista na Maternidade Nossa Senhora de Nazareth, o acesso ao serviço do aborto legal não existe quando apenas uma equipe é designada para cumprir a função.
“E quando a equipe do aborto legal não está lá [de plantão]? E se essa equipe estiver de férias? A mulher não vai ter acesso ao serviço?”, indaga a ginecologista, que não integra a equipe do serviço de aborto legal na Maternidade.
Moura já quebrou um braço no hospital após escorregar no piso molhado. Ela afirma que a situação física da unidade é dramática, a estrutura é muito grande e possui um grau de operacionalização muito baixo. “É um hospital de guerra”, afirma.
Segundo a médica, não há UTI materna e a comunicação entre os setores é deficitária. Os profissionais do hospital também não têm acesso ao histórico de atendimento aos pacientes nas Unidades Básicas de Saúde.
A unidade, que custa pouco mais de R$1 milhão por mês aos cofres do estado de Roraima, ficou conhecida pela população local como “hospital de lona”. A estrutura funciona debaixo de tendas em formato piramidal, construídas com lona branca.
Quanto menor a idade, maior o número de nascimentos em casa
Das meninas que deram à luz entre 2018 e 2021 em Roraima, 15% tiveram seus filhos em aldeias indígenas e 12% em domicílio. Ambas proporções ficam menores conforme as idades aumentam. Partos em domicílios ocorrem mais entre as meninas de pouca idade do que entre jovens e adultas.
O levantamento feito pela Gênero e Número também revela que 65% das meninas de 10 a 13 anos que tiveram filhos são indígenas, ainda que os povos originários representem 11% da população do estado, segundo o IBGE. A defensora pública Terezinha Muniz confirma que a incidência de violência sexual entre meninas indígenas é alta, mas explica que os serviços da defensoria são pouco demandados pelas comunidades.
A Defensoria Pública, segundo Muniz, tem desenvolvido atividades coletivas que promovem o acesso à informação sobre temas relacionados aos direitos das crianças e dos adolescentes. Durante as atividades, lideranças indígenas, mulheres e jovens, têm se posicionado pela proteção das meninas. “Elas se levantaram em uma das capacitações e disseram que é impossível, hoje, elas admitirem que uma menina seja entregue para um homem em nome da cultura, que isso é estupro”, conta Muniz.
A defensora pública Jeane Magalhães Xaud tem acompanhado um caso de duas adolescentes descendentes de indígenas que foram resgatadas recentemente de um garimpo na região. Elas haviam sido cooptadas sabendo que trabalhariam com prostituição, mas o que elas não sabiam é que seriam submetidas ao trabalho escravo.
“As meninas e adolescentes indígenas são alvo de muitas formas de violência, sendo as principais vitimas do garimpo ilegal, suportando, para além da violência que significa a destruição de suas terras e casas, severas violências sexuais e físicas”
“Ser menina em Roraima é uma grande batalha”
Como Roraima está localizada em uma tríplice fronteira (Brasil, Venezuela e Guiana), segundo Xaud, a situação é ainda mais delicada. Ela salienta que há investigações em curso ou já deflagradas que identificaram casos de tráfico de meninas, em especial de meninas indígenas, exploração sexual em situação de trabalho forçado ou análogo à escravidão em garimpos e redes de pedofilia.
Xaud afirma que “ser menina e mulher em Roraima é uma grande batalha”, pois a violência é normalizada. Ela também atua no Grupo Especial de Direitos Humanos da Defensoria de Roraima, na Comissão dos Direitos da Mulher e na recém criada Comissão dos Direitos dos Povos Indígenas da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos.
“É uma região em que os valores são muito patriarcais, para se dizer o mínimo. É muito comum o abuso de meninas e adolescentes pelos próprios pais, padrastos, amigos das famílias e vizinhos. Nós fomos campeões de feminicídio por vários anos, somos campeões de mortes de mulheres trans, de mortes na maternidade, então, nós temos um estado extremamente violento com as mulheres”, avalia Xaud.
*Esta reportagem foi produzida com apoio do Instituto Patrícia Galvão.