Última Pesquisa Nacional de Aborto revela que 1 a cada 7 mulheres já fez um aborto no Brasil
Assim, como menstruação, menopausa, gravidez, o aborto também é um evento comum na vida das mulheres. Porém, mesmo sendo usual, o aborto segue estigmatizado no Brasil. Mas, com a criminalização e o estigma, quem decide interromper a gravidez encontra uma série de entraves que podem custar a própria vida. E quem são elas? Pessoas comuns de diversas idades, profissões, escolaridades, estado civil, classes sociais, etnias. São mulheres de distintas religiões, com relacionamentos estáveis e muitas vezes têm filhos.
Esse perfil é traçado pela mais recente Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), com dados de 2021, que aponta também que 1 em cada 7 mulheres de até 40 anos já fez um aborto. Apenas em 2021, estima-se que meio milhão de mulheres interromperam uma gestação no Brasil. Das 2 mil mulheres consultadas, 12% daquelas que já abortaram declara não ter religião. Mais de 80% têm uma religião, e a grande maioria delas é católica ou evangélica. Ou seja, independente do que diz a lei ou a religião, mulheres de fé também abortam quando não querem ou não podem seguir com uma gestação. As mulheres que participaram da pesquisa foram selecionadas aleatoriamente, têm idades entre 18 e 39 anos e são residentes em áreas urbanas de 125 cidades do país.
“Os dados revelam como o aborto é um evento comum na vida reprodutiva de mulheres comuns, mulheres que professam religiões, que já tiveram experiências de maternidade. Porque é um evento que acontece: tanto o aborto espontâneo, quanto o provocado. A cada cinco gestações, uma vai terminar num aborto. É preciso falar sobre isso, porque isso é parte da realidade das mulheres”, ressalta a médica ginecologista e obstetra, Mariana Pércia. Para ela, é fundamental desconstruir o estigma social em torno do aborto. “As mulheres que abortam nem sempre são aquelas que são a favor da descriminalização do aborto. Na realidade, o aborto representa uma encruzilhada reprodutiva na vida de muitas mulheres”, explica a ginecologista.
Lia (nome fictício), 37 anos, moradora do interior da Bahia, se viu nessa encruzilhada e precisou tomar uma decisão. À época que se descobriu grávida, estava casada e já era mãe de dois filhos. O aborto não era um assunto que fazia parte de suas preocupações. No entanto, quando começou a pensar em interromper a gravidez foi em busca de informações. Em um primeiro momento, cogitou tomar um chá abortivo, mas quando começou a pesquisar sobre o procedimento, achou muito perigoso. “Para tomar a decisão correta, eu li muito material que está disponível na internet, de fonte confiável, da OMS [Organização Mundial de Saúde], do Ministério da Saúde”, conta.
Nessas pesquisas, ela descobriu uma médica que durante a pandemia de Covid-19 passou a atender por telemedicina mulheres que tinham direito ao aborto legal. As mulheres passavam por consulta presencial, mas o procedimento podia ser feito em casa, com acompanhamento da equipe a distância. “Quando eu li aquilo, me deu um alívio de pensar assim: se essas mulheres podem fazer o procedimento em casa, eu também posso. Se é seguro pra elas, também é seguro pra mim. A minha raiva toda era só que elas podiam fazer gratuitamente, pelo SUS, sem precisar se esconder. E eu não. Eu tenho medo até hoje”, diz.
O medo que ainda angustia Lia por ter feito um aborto em casa, utilizando uma medicação recomendada pela Organização Mundial de Saúde (OMS), é compartilhado por milhares de outras mulheres no Brasil. Isto porque o aborto ainda é criminalizado no país. Vale recordar que, de acordo com a OMS, o aborto é a interrupção da gravidez antes do início do período perinatal, ou seja, antes de 22 semanas completas de gestação. No Brasil, o aborto é um direito previsto por lei em três casos: gravidez resultante de estupro, risco à vida da mulher e feto anencefálico.
Pelo fato de ser criminalizado e estigmatizado, há muita desinformação sobre o aborto. Mariana Pércia explica que, ao contrário do que muitas pessoas pensam, a definição de aborto seguro ou inseguro não passa pela condição de legalidade ou ilegalidade. “Podemos ter abortos previstos na lei, feitos em hospitais por profissionais de saúde, que são inseguros, como é o caso do procedimento de curetagem uterina, reconhecido pela OMS como inseguro por expor as mulheres a uma série de complicações. Ao mesmo tempo, o aborto medicamentoso domiciliar, quando realizado até 12 semanas de gestação e sob orientações de profissionais de saúde, é considerado seguro”, diz.
Segundo a médica, a definição de aborto seguro e inseguro, dada pela OMS, tem se modificado ao longo do tempo e, desde 2014, a organização já publicou em alguns editoriais uma sugestão de mudança que inclua a possibilidade de um aborto seguro ser realizado fora do ambiente hospitalar.
“O mais importante é que as diretrizes dos órgãos de saúde, como a OMS, sejam seguidas corretamente, é isso que vai garantir a segurança do procedimento”, explica Mariana. Tais diretrizes são um conjunto de recomendações técnicas baseadas em evidências científicas para aprimorar a qualidade do cuidado em aborto ofertado para mulheres, meninas e pessoas com capacidade de gestar em todo o mundo. Elas ressaltam que, com os métodos e conhecimentos necessários, o aborto é um procedimento simples e seguro, que deve estar acessível a todas.
De acordo com o artigo “A quem interessa o aborto inseguro?”, escrito por Mariana Pércia com as pesquisadoras Luiza Cardioli e Ligia Cardieri, estima-se que cerca de 25 milhões de abortos inseguros ocorrem em todo o mundo. E 97% desses, em países com recursos limitados e legislações mais restritivas em relação ao aborto, o que dificulta inclusive o acesso a dados confiáveis.
Na América Latina e Caribe, essa taxa parece ser mais alta: 31 a cada 1000 mulheres por ano, em seguida vem a África, com 28 abortos inseguros a cada 1000, contra a menor taxa na Ásia, de 11 mulheres a cada 1000. As taxas de internações por complicações de aborto inseguro também variam por região e nível socioeconômico e tendem a serem piores em países com legislação mais restritiva.
No caso de Lia, ter acesso a informações adequadas e a uma rede de apoio foi fundamental para que a interrupção da gravidez fosse feita sem complicações. “Felizmente, eu tive acesso a um procedimento seguro, com os mesmos medicamentos que se usam nos hospitais e maternidades, para os abortos legais. Eu fui muito bem orientada e isso fez toda a diferença. Recebi apoio de uma rede de mulheres feministas que ajudam quem deseja interromper uma gravidez. Elas me enviaram material de leitura, conversaram comigo por mais de uma hora sobre como seria o procedimento, o que ia acontecer, o que era sinal de alerta, o que podia indicar que eu precisaria de atendimento hospitalar”, conta.
O aborto foi feito em casa, com o acompanhamento do marido, por meio do uso da medicação indicada. Ela não teve nenhuma complicação, por isso não precisou de assistência hospitalar.
Mariana Pércia explica que, segundo a OMS, a medicação indicada para o aborto domiciliar é o misoprostol, que deve ser usado até 12 semanas de gestação, sob orientação de profissionais de saúde. De acordo com a PNA 2021, 39% das entrevistadas usaram medicamento para interromper a gestação. A pesquisa não perguntou qual medicamentação foi usada, mas a PNA indica o possível uso do misoprostol pelo histórico do país.
Apesar de a OMS recomendar que a opção de aborto por medicamentos autoadministrados deve ser garantida pelo Estado a baixo custo e sem discriminação, esta não é a realidade no Brasil. Desde 1998, o fornecimento ou venda do misoprostol passou a ser enquadrado como crime contra a saúde pública, previsto no Artigo 273 do Código Penal Brasileiro, com pena de prisão de 10 a 15 anos e multa, punição muito superior a de homicídio ou estupro, por exemplo.
“Eu tomei a medicação, esperei fazer efeito, senti menos dor do que nos partos, por exemplo. Foi rápido. Eu pude fazer uma interrupção segura, eu sei que pra maioria das mulheres não é assim. Mas, deveria ser. Porque isso também teve um custo pra mim. A gente usou todo o dinheiro que tinha guardado, era pouco, mas era tudo que a gente tinha. Eu sei que a maioria das mulheres não faz um procedimento seguro porque não tem dinheiro mesmo, ou porque não consegue chegar numa rede como essa que eu consegui, que me apoiou”, lamenta Lia.
Mariana Pércia, que além de médica e obstetra, também atua no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde e é ativista pelos direitos reprodutivos, explica que é importante que se os métodos abortivos seguros sejam amplamente divulgados. “Não é crime falar sobre o misoprostol, sobre a dosagem correta. São documentos públicos da OMS. É uma obrigação profissional informar as pacientes sobre eles. Assim como é uma obrigação profissional sigilo médico. Muitas pacientes, muitas vezes, deixam de procurar as unidades de saúde e hospitais por medo de quebra de sigilo, porque isso vem sistematicamente acontecendo. Além de todo o estigma social que faz com que as mulheres tenham medo de procurar atendimento e serem maltratadas, denunciadas”, afirma.
Dados da PNA apontam que a solução clandestina que mulheres e pessoas gestantes precisam recorrer é muito arriscada: 2 de cada 5 que abortaram no Brasil precisaram ser hospitalizadas. A mortalidade por aborto no Brasil figura entre a quarta e a quinta causa de morte materna.
“As mortes por aborto são consideradas mortes evitáveis. Elas são evitáveis porque se o aborto for realizado de maneira correta, com os procedimentos adequados, de preferência numa idade gestacional o menos avançada possível, tem um índice de mortalidade muito baixo. O que gera a mortalidade, as complicações é, sem dúvida, a criminalização e a ilegalidade que colocam as pessoas a margem de procedimentos inseguros e de profissionais não orientados”, reforça Mariana.
Apesar de ser um evento comum e o perfil das mulheres ser variado, a PNA aponta que o aborto é um evento que ocorre, na maioria das vezes, no início na vida reprodutiva das mulheres. O levantamento indica que mais da metade (52%) do total de mulheres que realizou uma interrupção voluntária tinham 19 anos de idade ou menos, quando fizeram seu primeiro aborto. Deste total (abaixo de 19 anos), 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos e 6% meninas entre 12 e 14 anos.
Taxas mais altas foram detectadas entre as entrevistadas com menor escolaridade, negras e indígenas e residentes em regiões mais pobres. De acordo com o estudo, entre as indígenas entrevistadas 17% tinham realizado aborto; 11% mulheres pretas e 11% mulheres pardas.
“A PNA nos mostra que a gestação indesejada é fruto de uma série de eventos, de inequidades com relação ao acesso à justiça reprodutiva. Seja inequidade no acesso aos métodos reprodutivos, seja em relação ao acesso a uma educação sexual que deveria ser dada desde a escola para as crianças e adolescentes, seja no acesso concretamente aos contraceptivos através da atenção primária no SUS que muitas vezes é um acesso desigual. Não tem uma oferta de todos os métodos e uma discussão sobre os usos desses métodos. Tem muito uso incorreto”, elucida Mariana Pércia.
A médica chama a atenção também para o fato de grande parte das gestações acontecerem sob o uso de métodos contraceptivos. “Em primeiro lugar, porque não tem nenhum método contraceptivo que tem 100% de eficácia e depois porque as pessoas não têm uma boa orientação de como usá-los, do que fazer em caso de emergência. Além do que as mulheres muitas vezes usam métodos sob coerção dos seus parceiros, então têm dificuldade de negociação com relação ao preservativo peniano. Muitos companheiros proíbem as mulheres de usar métodos contraceptivos, associando esse uso à promiscuidade. É uma série de fatores que perpassam o uso de métodos contraceptivos, o que faz com que as mulheres mais jovens estejam mais suscetíveis a esse tipo de falha e mais suscetíveis a este tipo de coerção”, ressalta Mariana. Para ela, é importante refletir sobre o acesso aos métodos e sobre a importância de acesso a uma educação sexual de qualidade.
Para Lia, depois de ter interrompido uma gravidez, ela passou a perceber a importância de conversar com meninas e mulheres sobre o aborto. “Eu falo sempre que toda mulher tem que ter direito sobre o próprio corpo, se ela toma essa decisão de interromper a gravidez, é uma decisão pessoal, e ninguém pode dizer se ela tá certa ou tá errada, nem religião, nem político, nem o marido! Por isso que hoje eu defendo que não só o Brasil, mas todos os países devem garantir o direito à mulher de decidir e de ter acesso a um aborto seguro e pelo SUS”, conclui.
Assim como países vizinhos, a exemplo da Argentina e do Uruguai, o Brasil pode avançar na descriminalização do aborto. Transita no Supremo Tribunal Federal (STF) a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 442 que prevê a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação.
Sob relatoria da Ministra Rosa Weber – que já se mostrou publicamente favorável à pauta –, a ADPF pode entrar na pauta de votação do STF nos próximos meses. Caso seja aprovada, será um passo importante na luta pelos direitos sexuais e reprodutivos de mulheres e pessoas com capacidade de gestar. “O que precisamos é garantir a legalização do aborto, no sentido da garantia do Estado desse procedimento. Mas, a descriminalização vai trazer um efeito muito importante”, ressalta Mariana Pércia.
Edição: Gabriela Amorim