por Marcella Fernandes
Publicado originalmente no HuffPost Brasil
“A médica disse que como ela era toda pequenininha ela era normal, aí deu o caso como descartado, que hoje é o que mais existe.”
Quando Maria Giulia nasceu, em Maceió (AL), em maio de 2016, Gilza Santos viagra online usa da Silva, 31 anos, não imaginava que dali a poucos meses sua rotina iria girar em torno da filha com microcefalia. São quatro dias de tratamento por semana, além do tempo das consultas, exames e da luta burocrática para conseguir medicação ou benefícios a que tem direito.
No acompanhamento da gravidez, não foi diagnosticada qualquer alteração, tampouco no nascimento. No quinto mês de vida de Giulia, após o resultado do teste do pezinho, Gilza contou à pediatra que a filha sofria com espasmos. O resultado da tomografia saiu três meses depois, quando a criança tinha oito meses. Só então ela começou a estimulação precoce.
Na epidemia do zika vírus, que começou a dar sinais no Brasil em março de 2015, Alagoas se destaca pelo silêncio. Apesar de ser o estado com pior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do País e vizinho de Pernambuco, Paraíba e Bahia, onde o surto da doença explodiu, 45% dos casos suspeitos de sequelas pelo vírus foram descartados de 2015 a setembro de 2017.
De acordo com pesquisa “Zika em Alagoas: a urgência de direitos”, produzida pela Anis – Instituto de Bioética, o estado possui o dobro de casos descartados por nascidos vivos que a Bahia. A proporção é de 22 para 10 mil entre alagoanos e de 11 para 10 mil entre os baianos. O problema é quando há um caso como o de Maria Giulia, que foi descartado apesar da síndrome. A falta de diagnóstico resulta na falta de tratamento.
Diante desse cenário, um grupo voluntário de profissionais da Saúde e de outras áreas organizou um mutirão para reavaliar as crianças em Maceió. Dos 26 diagnósticos concluídos, 38% dos casos tinham microcefalia, atraso no desenvolvimento ou alguma outra alteração, de acordo com dados inéditos a que o HuffPost Brasil teve acesso.
De 2015 até setembro de 2017, foram 443 bebês notificados com suspeita de zika em Alagoas. Desse total, 200 casos foram descartados e 126 ocorrências de microcefalia confirmadas, além de 44 crianças com outras alterações neurológicas e 15 com provável síndrome congênita do zika, de acordo com dados da Secretaria de Saúde de Alagoas. Outros dois casos estão em investigação.
Há ainda crianças que não resistiram. Dos 26 casos de mortes de recém-nascidos notificadas com suspeita de zika desde o fim de 2015, sete tinham laudo de tomografia sugestivo de microcefalia e três foram classificadas como provável síndrome congênita do zika.
Apesar de a microcefalia ser o sintoma mais associado à infecção pelo vírus na gravidez, em 2016, passou-se a adotar o termo “síndrome congênita do zika“, a fim de incluir outras características, como alterações ortopédicas, por exemplo.
Os bebês diagnosticados com essas alterações são encaminhados para neuropediatra e passam por uma avaliação multidisciplinar antes de iniciarem a estimulação precoce com fisioterapeuta, fonoaudiólogo e terapeuta ocupacional nos centros de reabilitação. Como até os 3 anos é a fase na qual as crianças desenvolvem habilidades essenciais, a falta de estimulação nessa idade pode ser determinante para o futuro dessa geração.
Para chegar até esse ponto, contudo, é preciso que o caso não seja descartado. Entram nessa categoria crianças que passaram por avaliação médica e não correspondem aos sinais e sintomas da síndrome.
No final de 2015, os estados passaram a elaborar seus próprios protocolos para definir o atendimento às famílias. Em Alagoas, o documento é de janeiro de 2016, um mês após o estado decretar situação de emergência para a epidemia do vírus.
Para um recém-nascido ser incluído na rede de assistência da política do zika, é preciso do chamado “laudo do radiologista sugestivo de anormalidade típica de zika” após o exame de tomografia. Há apenas dois aparelhos no estado. O de Maceió concentra os atendimentos da cidade com mais de 1 milhão de habitantes. O outro tomógrafo fica em Arapiraca, segundo maior município alagoano, com cerca de 230 mil habitantes e distante 131 quilômetros da capital.
Na avaliação da infectologista Mardjane Nunes, do Hospital Escola Helvio Auto (HEHA), em Maceió, o poder público falhou ao estabelecer um padrão restrito de diagnóstico em um momento com poucas respostas sobre o vírus, o que deixou 45% dos casos notificados de fora do tratamento.
A epidemia do zika vírus no Brasil começou a ser monitorada pelo Ministério da Saúde em novembro de 2015, e o fim do estado de emergência pela doença foi decretado pela pasta em maio de 2017. Neste ano, foram registrados 15.586 casos prováveis de febre pelo vírus no País, ou seja, 7,6 casos a cada 100 mil habitantes. Destes, 6.679 (42,9%) foram confirmados. Em 2016, foram 205.578 casos prováveis e oito mortes pelo vírus confirmadas laboratorialmente.
Em relação às gestantes, foram registrados 2.112 casos prováveis desde o início do surto, sendo 674 confirmados por critério clínico-epidemiológico ou laboratorial.
Quanto aos bebês, desde 2015, o país registrou 14.258 recém-nascidos em risco para a síndrome congênita do zika. Desses, 2.869 foram confirmados como afetados pela síndrome, 170 foram classificados como casos prováveis para a síndrome, e 3.063 ainda se mantêm em investigação. Outros 6.248 recém-nascidos foram descartados e 1.908 excluídos, segundo o Ministério da Saúde. Descartados são aqueles com exames normais ou malformações não infecciosas. Excluídos são os que não se encaixam nessa definição. A média anual nacional de microcefalia de 2000 a 2014, por sua vez, era de 164 ocorrências.
Diante das lacunas entre a burocracia e a realidade, um grupo de profissionais de Saúde e de outras áreas organizou um mutirão para reavaliar casos à margem da rede de assistência em Maceió. O trabalho voluntário começou a partir da busca de cerca de 80 casos considerados descartados. A procura se concentrou na capital e muitos bebês não foram localizados porque mudaram de endereço e as informações se perderam.
Em 8 de agosto, as famílias localizadas passaram por uma bateria de exames e consultas com uma equipe composta de fisioterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e pediatra, além de avaliações auditivas e oftalmológicas. “Só de olhar o movimento você percebia que havia crianças que deveriam estar sendo acompanhadas e não estavam”, conta a infectologista Mardjane Nunes, do HEHA. “A gente vê como foi precipitado o descarte desses casos num momento em que a gente não sabia quase nada”, completa.
De 41 crianças identificadas pela equipe multidisciplinar em Maceió, 26 diagnósticos foram concluídos. Desse total, 38% dos casos tinham microcefalia, atraso no desenvolvimento ou alguma outra alteração. A análise das outras crianças ainda não foi finalizada. A intenção é que, ao final dessa revisão médica, seja enviado um relatório para a Secretaria de Saúde a fim de que elas voltem a ter acompanhamento adequado na rede pública de saúde.
O HEHA, hospital ligado à Uncisal (Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas), é referência para o tratamento de doenças infecciosas no estado e recebeu boa parte dos casos de enfermidades provocadas pelo Aedes aegypti na época da epidemia.
Em 2016, foram 886 casos notificados de zika no hospital. Neste ano, o número caiu para nove. O hospital não contabiliza os casos de 2015, quando o diagnóstico ainda não havia sido definido e, por isso, havia a classificação equivocada como dengue. No ano passado, Alagoas registrou 4.591 casos de zika, de acordo com a Secretaria de Saúde. Neste ano, o número despencou para 117, indicando o fim do surto.
Entre fevereiro e março de 2015, profissionais de saúde começaram a perceber quadros supostamente de dengue com sintomas diferentes. Na época, a Secretaria de Saúde emitiu um alerta para notificar suspeitas de dengue sem febre, diferente do diagnóstico comum até então. “A gente achava que era uma variação da dengue, mas na realidade, provavelmente, já era o zika circulando”, afirma Mardjane Nunes.
Alagoas enfrenta até hoje dificuldades de dar um diagnóstico laboratorial devido a limitações técnicas. Os alagoanos contam majoritariamente com o teste rápido, considerado insatisfatório para uma investigação de melhor qualidade sobre a infecção. Para detectá-la, é possível usar exames de PCR e sorológicos (IGM e IGG). O Laboratório Central (Lacen) conta apenas com o PCR.
De acordo com a médica, no início da crise, predominava um quadro mais leve nos atendimentos, de manchas no corpo, com febre baixa ou mesmo sem febre.
A gente falava que zika não provocava tanta alteração como a dengue. Não tinha por que ter pânico. Quem mata é dengue. Chikungunya deixa sequela e a zika é uma doença branda. E de fato era isso para o adulto, mas a gente não sabia do potencial que tinha de alteração para o feto.
O principal critério clínico usado para o alerta de saúde pública no Brasil foi a redução do tamanho da cabeça dos recém-nascidos — o chamado “perímetro cefálico” esperado para seu tempo de gestação. No início da epidemia, em 2015, o perímetro considerado regular era de 33 cm para um recém-nascido acima de 37 semanas. O tamanho foi reduzido para 32 cm, posteriormente.
Ainda em 2016, o critério que passou a ser adotado foi de 30,24 cm para meninas e 30,54 cm para meninos, em uma tentativa de padronização internacional pela OMS (Organização Mundial da Saúde), que em fevereiro daquele ano declarou situação de emergência global pelos efeitos do vírus zika na gravidez.
O documento mais recente do Ministério da Saúde para notificar casos suspeitos da doença, publicado em dezembro de 2016, ampliou as possibilidades de notificação, incluindo, por exemplo, bebês com qualquer alteração neurológica.
Na prática, contudo, a realidade é outra devido à falta de informação de quem atende à população. Em 2016, Santana do Ipanema, a maior cidade do sertão alagoano, com quase 45 mil habitantes, registrou três casos de crianças que nasceram com alterações ortopédicas, mas sem microcefalia. “Foi um dilema convencer o médico de que tinha que fazer tomografia porque ele não se convencia de que era uma suspeita de zika porque essa informação não está difundida”, aponta Mardjane Nunes.
“Não basta mandar uma cartinha para o profissional. Tem que monitorar. Não está notificando? Precisa treinar? As pessoas estão entendendo o que precisa ser feito? Vigilância é um trabalho contínuo e aqui a gente não está percebendo nenhum movimento em torno disso”, completa a infectologista.
Outro entrave é o passo seguinte à notificação, ou seja, qual atendimento tais crianças devem receber — o que é definido por cada estado. De acordo com o protocolo adotado em Alagoas, apenas recém-nascidos com perímetro cefálico inferior ao padrão devem ser encaminhadas para tomografia. Após essa etapa, só aqueles com laudo indicativo de sequelas pelo zika vão para estimulação precoce.
Há um hiato entre novas descobertas sobre o zika e a incorporação das novidades nas políticas públicas. A Secretaria de Saúde de Alagoas tem discutido um novo protocolo, mas o texto ainda não foi fechado.
Uma sugestão de infectologistas é que a criança passe por um especialista antes de fazer a tomografia, a fim de evitar gastos desnecessários e a exposição do paciente à radiação, que pode aumentar a predisposição para o câncer, se o exame for feito mais de uma vez. Sem um novo protocolo e com lacunas na formação e sensibilização dos profissionais, mais crianças correm o risco de serem negligenciadas.