por Gabriela Rondon
Publicado originalmente no Jota
Maria Carolina é uma das mulheres da primeira geração de afetadas pelo vírus zika no Brasil. Com seu marido Joselito, ela vive em um sítio no município de Esperança, no agreste da Paraíba. O filho mais velho é João Gabriel, e a filha mais nova é Maria Gabriela, bebê diagnosticada com a síndrome congênita do zika. A história da família é espelho da desigualdade que a epidemia evidencia.
Com um ano e cinco meses, Maria Gabriela é uma criança com múltiplas necessidades pela síndrome. Tem microcefalia, atraso no desenvolvimento neuropsicomotor e baixa acuidade visual. Toma anticonvulsivante e usa óculos, além de ter de ser acompanhada por equipe de profissionais para a estimulação precoce: fisioterapia, fonoaudiologia, neurologia são algumas das especialidades de que ela precisa para se desenvolver. A família tem gastos diversos com suas necessidades especiais de cuidado, alimentação e transporte para os atendimentos de saúde. Esses são os gastos diretos dos efeitos da epidemia que, por poderem comprometer o orçamento familiar de maneira especialmente grave, são chamados por especialistas do campo de gastos catastróficos.
A partir do reconhecimento de suas necessidades múltiplas e agravadas pelo zika, a família recebia o Benefício de Prestação Continuada (BPC) da bebê e o Bolsa Família. Na semana passada, recebeu a informação de que por “excesso de renda” de 14 reais, já não receberia mais o Bolsa Família. Como foi feita essa conta? Somaram o valor do BPC à renda regular da casa para concluir que Joselito, Maria Carolina, João Gabriel e Maria Gabriela superaram a linha de pobreza que os classificaria para acesso ao benefício de transferência de renda.
O que os executores da política pública não parecem compreender nesse caso é que cada benefício tem razão de ser diferente dentro do marco constitucional da assistência social. O BPC não é riqueza que se soma às contas de uma casa, é uma renda mínima que deve ser garantida a pessoas idosas e pessoas com deficiência, como Maria Gabriela, que é vítima de uma tragédia de saúde pública. O valor pago por meio do BPC, para que cumpra seu propósito, deve ser integralmente direcionado às demandas específicas de Maria Gabriela, e não às contas regulares de seus pais e irmão.
Para todos os outros gastos, a demanda da família continua a mesma ou se agrava. Antes da epidemia, Maria Carolina também podia exercer trabalho remunerado e compor o orçamento familiar, hoje já não pode. Sua saída do mundo do trabalho representa um gasto indireto da epidemia: a queda do rendimento, e não só o aumento das despesas, agrava sua condição de pobreza. Nesse cenário, não há dúvidas de que o Bolsa Família ainda é necessidade básica de sobrevivência com dignidade para os quatro.
O Supremo Tribunal Federal já entende desde 2013 que o BPC recebido por um idoso em uma família não deve ser assumido como renda para o cálculo de direito ao BPC por outro idoso. Da mesma maneira, o Superior Tribunal de Justiça em 2015 estendeu essa interpretação aos múltiplos benefícios em caso de pessoas com deficiência. Já é também consenso na execução da política de assistência que o valor do Bolsa Família não integra o cálculo de renda mensal para concessão do BPC. O que pede a situação da família de Maria Carolina e Joselito, e de outras tantas afetadas pelo zika, não é mais do que uma analogia simples e direta do que já tem sido reconhecido: que o BPC não conte para o cálculo de acesso ao Bolsa Família.
Para entender tudo isso, os gestores precisam querer conhecer os efeitos da epidemia que, diferente do anunciado pelo governo federal, não acabaram no país. Para esta família, a emergência do zika acaba de mostrar que está longe de terminar.