por Gabriela Vinhal e Thaís Cunha
Publicado Originalmente no Correio Braziliense
No Dia Internacional da Mulher, flores foram substituídas por protestos no mundo inteiro. As típicas homenagens deram lugar à consciência de que falta muito a ser conquistado. Mulheres que ousam defender a igualdade de direitos e recusam o silêncio são perseguidas violentamente no Brasil. Na série de entrevistas que o Correio inicia hoje, 8 de março, você vai conhecer histórias de mulheres que resolveram não se calar. Com isso, encaram a violência diariamente, sem ver motivos para desistir.
Em casa, clamar pelo direito de se separar leva a índices crescentes de feminicídio. No mercado de trabalho, salários e direitos iguais ainda são ilusão para muitas empresas. E, na internet, defender a ideia de que homens e mulheres devem ter igualdade é motivo para ataques machistas, racistas e homofóbicos. “Sofro ameaças todos os dias. Dizem que vão me torturar, me estuprar e que têm meu endereço”, diz Lola Aronovich, professora da Universidade do Ceará e autora do blog ‘Escreva Lola Escreva’.
A defesa de direitos leva a índices preocupantes em diversas áreas. Em 2016, 67 ativistas morreram no Brasil. Sete eram mulheres. O índice — 10,4% — pode parecer pequeno em uma primeira análise. No entanto, para Lúcia Bessa, subsecretária de Políticas para as Mulheres do Distrito Federal, o grupo é considerado mais vulnerável, por causa do machismo naturalizado na sociedade. “Ainda se acredita que o lugar da liderança não pertence às mulheres, porque nasceram para ficar em casa e servir ao marido. Quem não se enquadra nesse perfil, vira uma ameaça. A violência contra a mulher não escolhe situação, principalmente se for para nos calar”, justifica.
O conservadorismo crescente no país é motivo de preocupação. Ativistas reclamam que, enquanto conquistas não avançam, a participação do Estado na proteção das mulheres ainda é pífia. Diante da omissão de quem ocupa lugar de destaque no governo, as militantes precisam recorrer às organizações não governamentais. O Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFemea) é uma das instituições brasileiras que promove rodas de conversa, apoio psicológico, emocional e, muitas vezes, financeiro às líderes, para que possam continuar na luta.
Para Jelena Djordjevic, integrante do CFemea que está à frente da Campanha de Autocuidado e Cuidado entre Ativistas, a rede de apoio é uma estratégia para minimizar o impacto da violência contra mulheres ativistas e contribuir para a sustentabilidade do ativismo. “O espaço é necessário. Elas lidam com os problemas de outras mulheres e muitas vezes se esquecem dos próprios. O debate é importante”, analisa.
O sentimento de insegurança e medo foi comumente relatado pelas ativistas para esta série. A cada 11 minutos, uma mulher é violentada no Brasil. Só no Distrito Federal, desde a tipificação do feminicídio como crime hediondo, em março de 2015, foram registrados 24 casos de feminicídio, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal. Só em 2016, houve o homicídio de 19 mulheres pela mera condição de serem mulheres — um aumento de 280% em relação ao número do ano retrasado, de cinco mortes. Apesar desse cenário, a subsecretária Lúcia Bessa afirma que a “integridade física e psicológica são e sempre serão uma prioridade do governo”. Contudo, ainda não há registro de projetos que garantam a segurança de mulheres militantes no DF.
O lugar de poder dificilmente está na mão de quem precisa, de fato, de ações governamentais. Umas das poucas exceções é Djamila Ribeiro, feminista negra que ocupou a Subsecretaria de Direitos Humanos de São Paulo, na gestão de Fernando Haddad. Mestre em filosofia política, ela defende mais representatividade nos espaços de poder. “Temos de estar nesses lugares. Não podemos ser apenas beneficiários de políticas públicas, mas as pessoas que estão ali, pensando e executando essas políticas.”
Em algumas situações, as perseguições extrapolam o mundo virtual e chegam à porta das casas das ativistas. Jornalista e moradora da Favela da Maré, no Rio de Janeiro, Gizele Martins acusou a Polícia Militar por dois assassinatos na comunidade. Desde então, ela relata ameaças de membros da corporação. Ela entende que trabalhar com direitos humanos dentro de uma comunidade nunca será uma situação bem recebida pelo sistema. No entanto, não pretende parar: “Apesar de tudo, é muito gratificante levar o debate para dentro da favela. Eu amo fazer comunicação comunitária, me acrescenta como militante e como figura humana também”.
Apesar de serem pessoas completamente diferentes, Lolas, Djamilas e Gizeles só têm uma arma contra a perseguição: resistência, palavra repetida diversas vezes nesta série de entrevistas, publicadas semanalmente no Correio Braziliense.
Aos 47 anos, a antropóloga Débora Diniz é uma das principais vozes no debate pelos direitos das mulheres no Brasil e no mundo. Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) e pesquisadora da Anis — Instituto de Bioética, uma instituição feminista, ela defende abertamente os direitos reprodutivos femininos e a total liberdade de escolha das mulheres. Débora foi uma das articuladoras da ação que garantiu o direito ao aborto em casos de fetos anencéfalos, em decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2012.
Por ter ideias tão convictas e colocá-las em prática em sua pesquisa, Débora chegou a ser demitida de uma universidade católica da capital federal. Ainda assim, não se calou. Dentro e fora de sala de aula, a antropóloga tenta destruir qualquer tipo de neutralidade de pensamento. “Eu tenho uma profunda convicção de que o mundo será melhor quando reconhecermos a igualdade entre os homens e as mulheres e tivermos uma sensibilidade feminista disseminada entre nós”, justifica.
No ano passado, após ter estudado as mulheres em situação carcerária e lançado a obra Cadeia — Relatos sobre mulheres, viu a epidemia de zika se alastrar pelo país. Por ver que a doença tem profundo impacto na vida reprodutiva das mulheres, a antropóloga decidiu mudar o foco da pesquisa e foi a Campina Grande (PB) para analisar de perto os estragos do vírus. A experiência resultou no livro Zika — Do sertão nordestino à ameaça global e em um documentário que ressalta a importância da possibilidade de interrupção da gravidez para mulheres que contraíram o vírus.
“Eu vi o sofrimento e a agonia dessas mulheres. O aborto, nesses casos, não é por uma malformação do feto, mas para cuidar da saúde mental das mulheres”, argumenta. No último 8 de março, Dia Internacional da Mulher, Débora participou da entrega de dois pedidos ao STF: um pelo direito ao aborto a mulheres vítimas do zika e outro para a descriminalização do aborto até 12 semanas, com o objetivo de proteger a dignidade da mulher.
Atualmente, ela mora nos Estados Unidos, onde frequentará as universidades de Nova York e Yale como pesquisadora visitante por um ano, ambas no curso de direito. Ela voltará ao Brasil esporadicamente para fazer pesquisa de campo no Nordeste e dar continuidade ao estudo sobre o zika no país. Seu maior desejo é manter o tema no centro das atenções do Brasil.
O que é feminismo para a senhora?
É uma forma de vida, uma forma de ver o mundo, de ensinar sobre o mundo como uma professora. Mas é o que me oferece as lentes: o feminismo não é essencialmente sobre as mulheres, mas sobre afinar minha sensibilidade para todas as formas de desigualdade, de opressão e de injustiça, até as que não consigo ver devido aos meus privilégios de vida, porque todas nós nos acomodamos com aquilo que a vida nos deu de privilégio — seja raça, sexagem, classe social. O feminismo são essas lentes teóricas que me permitem continuamente me reescrever sobre as formas de desigualdade e opressão, mas tendo como núcleo central as mulheres.
Como foi o primeiro contato da senhora com o feminismo?
Foi um processo de encontro permanente, não sei dizer exatamente o momento. Quando fui demitida da Universidade Católica de Brasília por conta da minha argumentação e pesquisas a favor do aborto foi o momento de um recentramento sobre as dificuldades de se falar sobre uma experiência tão entranhada na vida das mulheres, e que não era minha experiência particular. Eu tinha 30 anos. Agora, aos 47, embora nunca tenha feito um aborto, tenho certeza de que, se eu precisasse me defrontar com essa experiência, não seria a mesma experiência das mulheres das quais ouvi as histórias, repletas de medo, segredo e sofrimento. Eu diria que (o contato com o feminismo) foi uma aproximação natural, como forma de existência crítica na vida, sendo uma mulher que entrou na universidade nos anos 1990 e viveu todas as transformações do Brasil a partir da abertura democrática.
Já sofreu algum tipo de perseguição por defender o direito das mulheres?
Não é para criar uma imagem de heroína, mas é fato que sim. No início da minha carreira, eu fui demitida. Foi muito intenso perder o emprego, porque, no começo da carreira, eu mal pagava minhas contas. Isso tinha um estigma muito grande. Essa ideia de composição da vítima é muito difícil de ser construída, porque todo discurso hegemônico, especialmente o da discriminação das mulheres, ainda é construído pelos homens. Assim como em um caso de violência sexual, quando se questiona as roupas que a vítima estava usando, me indagavam: “Mas como você estava em uma universidade católica?”. E eu tinha que me justificar e explicar que não era um seminário. Eu tive perdas importantes, senti vergonha. E eu me perguntava: “Porque isso é uma pergunta?”. Eu tive que responder de duas maneiras: fiz uma queixa e abri um processo penal.
Encontrou dificuldades na área acadêmica por ser mulher?
Além de feminista, eu sou professora e acadêmica do direito da mulher. Se eu dissesse que não, estaria mentindo. Quando eu entro em sala de aula, o feminismo me antecede. Os alunos — homens — sabem isso de antemão e ficam alerta sobre se posso “deslizar” para o que eles acham que pode ser ideológico. A sala de aula é muito interessante, porque eu tenho um bom tempo para desconstruir qualquer ideia de neutralidade. Eu já começo mostrando a eles que nenhum homem ali tem neutralidade. A diferença para os outros é que estou sendo clara e honesta com eles sobre o fato de que tenho posições, mas vou tentar o máximo possível trabalhar a minha subjetividade, tornando-a explícita, para que possamos nos encontrar na nossa subjetividade. Os meus colegas que se propõem neutros, talvez, estejam enrolando muito mais que eu.
Fazer a defesa do aborto em um país tão religioso gera uma perseguição maior?
O nosso maior problema é viver em um país onde o poder se confunde com as religiões, onde o poder está cada vez mais entranhado com as elites católicas e evangélicas. Sim, isso gera maior perseguição, como a resultante da concepção equivocada sobre qual é o papel de uma universidade católica — ela não é um monastério; pode até ensinar religião como um complemento. Gera uma discriminação silenciosa, porque, como são as elites que ainda têm esse poder, é difícil nomear o que está acontecendo.
Como estabelecer um diálogo com as mulheres que se opõem ao direito de interromper uma gestação sem afastá-las do movimento feminista?
Há uma incongruência de termos, porque o feminismo é o reconhecimento da liberdade das mulheres de tomarem suas próprias decisões. A resistência ao aborto, por um viés religioso ou moral, tem uma incoerência com o feminismo, que é o reconhecimento da autodeterminação individual. Então, eu não vejo, na verdade, como aproximar quem não acredite na capacidade de autodeterminação individual do próprio feminismo. Há uma contradição fundamental que é a possibilidade da autodeterminação dos indivíduos.
Qual é a sua motivação para continuar na luta pela conquista de direitos para as mulheres?
Motivação existencial. Ela é apartidária, não é uma busca de um poder legitimado pelas instituições. Ela é por uma profunda convicção de que o mundo será melhor quando reconhecermos a igualdade entre homens e mulheres, e entre as mulheres de diferentes rendas, raças, religiões. A vida será melhor quando tivermos uma sensibilidade feminista disseminada entre nós.
A senhora lançou o livro Zika — Do sertão nordestino à ameaça global, no qual discute o direito da gestante com o vírus de interromper a gravidez. De lá para cá, a senhora acredita que tenha ocorrido uma maior conscientização das pessoas? Continua visitando o Nordeste?
Sobre o zika, tivemos um silenciamento. Lancei o livro em setembro do ano passado, e parece que o zika não está mais no Brasil. Não escutamos mais as declarações das mulheres. O mundo está vivendo um grande Big Brother entorno do Trump, da primeira dama, da Friboi e se esquece de olhar para o lado e ver quem são essas mulheres afetadas pelo vírus.
Como a senhora responde a alguém que fala em eugenia quando se discute a interrupção de gravidez em casos com zika?
Eugenia é uma prática totalitária, uma ideologia opressora que pressupõe o extermínio compulsório de pessoas que não são bem-vindas à coexistência. Rapidamente, nos lembramos do que foi o nazismo. Não é disso que estamos falando no Brasil, tampouco sobre o aborto. No caso específico do zika, essa comparação é ainda mais equivocada, seja por ingenuidade ou má fé. O direito de interromper a gestação para a mulher infectada com zika é um direito, não obrigação. Não dá, portanto, para falar em eugenia. Esse direito não está relacionado à malformação do feto, mas sim ao cuidado da saúde mental das mulheres.
Para escrever o livro e lançar o documentário, a senhora ouviu muitos médicos. Eles têm se sensibilizado pela causa da interrupção da gravidez em casos com zika? Há diferença de pensamento entre profissionais mulheres e homens?
Eu não fiz nenhuma classificação entre os médicos mulheres e homens. Mas eu respondo sua pergunta com tristeza porque, desde o início da epidemia, só temos um declínio de sensibilização, não só entre médicos, mas entre todos nós, com o que está acontecendo. Essas mulheres não estão recebendo nem sequer um repelente para o mosquito. Métodos de longa duração só chegam às mãos por caridade ou ajuda. Temos um problema gravíssimo no país hoje, que é a atenção a essas mulheres em risco ou já afetadas pelo vírus com suas crianças.
A senhora foi uma das articuladoras da ação que garantiu a interrupção de gravidez de fetos anencéfalos em decisão do STF. No caso dos bebês com microcefalia, não há certeza de que a criança vai morrer logo após nascer. Como equiparar essas duas situações?
Eu jamais equiparo essas situações. Quando eu faço uma analogia, lembro que, nos casos de aborto devido a estupro, não perguntamos à mulher quem foi o estuprador. Perguntamos se ela está em sofrimento e se aquela gravidez foi fruto de um estupro. Consideramos o sofrimento da mulher para garantir o aborto. No caso do zika, é a mesma coisa. Quem compara com a anencefalia é eugênico. A questão não é se o feto vai sobreviver ou não, mas o reconhecimento da dignidade como fator central para que ela possa interromper a gravidez.
Com o atual cenário político brasileiro, há esperanças para o avanço das pautas feministas em 2017?
Sobre o aborto, nesse 8 de março, o PSOL e a Anis pediram a descriminalização do aborto até 12 semanas para proteger a dignidade da mulher. Há também o pedido de permissão de aborto nos casos de zika. 2017 é o ano do aborto no Brasil. Coincidentemente, as duas pautas caíram nas mãos duas mulheres do Supremo. Zika está com a ministra Cármen Lúcia, e aborto, com Rosa Weber. Há algo importante sobre mulheres falando de aborto e mulheres pautando aborto.
As dificuldades podem ser atribuídas à falta de representatividade feminina no Congresso?
Sim e não. Sim, porque temos menos de 6% da representação política no Congresso, mas representatividade feminina precisa ser qualificada por uma consciência política, que passa por um agendamento feminista na vida social. Com essa caça às bruxas de “escola sem partido” e “ideologia de gênero”, nós só vamos fragilizar a consciência política sobre a desigualdade entre homens e mulheres e a importância do feminismo para pautar lutas por igualdade.
O movimento feminista tem ganhado as redes sociais nesses último tempos. A senhora considera isso uma vitória?
Não tenho dúvidas. Houve um deslocamento da luta política brasileira no início dos anos 2000, com as redes sociais desempenhando um papel muito importante. Ali, mulheres muito jovens, antes mesmo de votar, já se assumem feministas, e o aborto para elas é uma questão central. Nosso maior desafio agora é saber como articular essa grande multidão de mulheres para causas concretas.
Mulher, modelo, atriz, transexual, Viviany Beleboni, 29 anos, virou um símbolo da luta contra a LGBTfobia quando desfilou crucificada na Parada do Orgulho Gay de São Paulo em 2015. Em cima de um trio elétrico, cruzou a Avenida Paulista nua e coberta de maquiagem que simulava sangue e hematomas. Com as emoções estampadas no rosto, trouxe à tona a importante discussão sobre (in)tolerância.
O protesto gerou polêmica e dividiu opiniões de religiosos, ativistas e até de membros da comunidade LGBT em todo o país. Viviany foi intimada a prestar esclarecimentos à polícia sobre o protesto, após representação movida pela Associação das Igrejas Evangélicas de São Paulo (AIESP). Foi também alvo de críticas de políticos protestantes, como o deputado Marco Feliciano (PSC-SP).
As críticas e agressões verbais, então, deram lugar à violência física. Por duas vezes, ela foi agredida na rua. Em uma das ocasiões, foi esfaqueada. O medo de ser morta somou-se aos obstáculos do dia a dia, como a dificuldade de incluir nos documentos o nome social, uma das lutas mais comuns da comunidade trans.
A violência que atingiu Viviany é a mesma que assombra os outros milhares de transexuais do Brasil, recordista mundial de assassinatos de pessoas trans. Segundo a ONG Transgender Europe (TGEu), ao menos 868 travestis e transexuais foram mortos no país nos últimos oito anos — o triplo do segundo colocado no ranking, o México.
Quase dois anos após a 19ª Parada Gay, a atriz e modelo continua na luta pelo direito de existir sem as marcas da violência. Ela batalha para que o Brasil seja, também, o país de Lea, Natylla, Melissa, Dandara. De Viviany Beleboni. Mesmo perseguida, ela persiste.
O que é feminismo para a senhora?
Uma luta para existir igualdade entre homens e mulheres. Apenas igualdade, nem mais nem menos. Seja na política, nas tarefas domésticas e nos salários, independentemente de seu gênero ser feminino ou masculino.
A senhora se considera feminista?
Sim. Luto por toda forma de igualdade social. Acho que não podemos ser menosprezadas por nascermos mulheres. O que tem de prevalecer é a competência. Se um homem e uma mulher fazem as mesmas tarefas e cumprem os mesmos horários, qual é a lógica de a mulher ganhar menos?
Como foi o seu primeiro contato com o feminismo?
Foi ao perceber que países usam mulheres como objeto sexual, que grávidas são demitidas, que sofrem assédio na rua apenas por usarem uma roupa com a qual se sentem bem, enquanto homens podem andar sem camisa em plena luz do dia… Igualdade deveria ser um instinto básico, uma sabedoria de todo ser humano.
A senhora já sofreu perseguições?
Sim, desde criança, na escola; de “religiosos” fanáticos, no próprio meio LGBT.
Como foram?
Muito ruins. O que vejo nessas pessoas é uma vontade de padronizar as pessoas, apontar o que é certo e errado, o que pode ou não pode, sendo que cada pessoa tem uma vida, uma história e uma experiência diferente. O que é normal para mim pode não ser para a pessoa que está lendo esta entrevista. Somos diversos em todos os aspectos. Mas as pessoas têm medo de serem rejeitadas e recorrem a padrões para não sofrer preconceito.
A senhora acha que, por não se enquadrar nos padrões de gênero, as perseguições são mais intensas e rotineiras?
Vivemos em um mundo muito religioso, que ainda vive sob influência de um livro chamado Bíblia, que há centenas de anos dita o que é normal, bom, ruim. Tudo que é diferente do conto de fadas e das contradições lá escritas é tido como “anormal”. Dentro da Bíblia, sou abominável e estou errada, mas, como não preciso de manual de instrução para saber a realidade que vivo, e o que é certo e errado na vida, acredito que, fazendo o bem e vivendo uma vida sem prejudicar o próximo, deixo um grande legado.
Sente medo?
Tomo remédios para evitar as crises de pânico devido às ameaças que recebi. Medo é algo presente em minha vida.
Como faz para se manter segurança?
Evito andar sozinha e discutir por bobagens, ainda mais quando sei que a pessoa não está disposta a me entender. E evito lugares de histórico transfóbico e homofóbico.
A senhora já deixou de fazer alguma coisa por causa disso?
Sim, inúmeras… compras, pagar contas, fazer exercícios físicos, andar sozinha.
Essas perseguições já se manifestaram em forma de violência física. Como lidou com isso?
Tento levar isso como um aprendizado e repito que é apenas uma fase ruim. Esperança é meu lema.
Já teve vontade de desistir?
Inúmeras vezes. Acordava querendo dormir, sem vontade de me ver no espelho, sem querer encontrar ninguém. Eu me achava um fracasso, achava que não faria falta no mundo.
Se é tão difícil, por que continuar na militância? O que a motiva a continuar?
O que me motiva a continuar é saber que o mundo é diverso. E que existem pessoas morrendo por causa da ignorância, da falta de informação e de educação. Tento fazer, dentro do possível, as pessoas refletirem e verem que todos nós somos diferentes, seja na cor dos olhos, na altura, no peso, nas crenças, na cor, no sexo, no gênero. Somos uma raça diversa, e a prova disso é que é impossível acharmos alguém igual a gente. E por que uns valem mais e outros menos? É algo que precisa ser pensado, pois o que importa é o caráter de cada pessoa.
A senhora acredita que viverá tempos menos perigosos e doloridos?
Acho que a vida muda constantemente, vagarosamente. Com o tempo, as pessoas verão o quão tolas e desinformadas são, por má educação. Acho que educação é a base de tudo, e a luta por igualdade, um dever.
Como a senhora lida com as pessoas que pensam diferentes? Tenta diálogo?
Eu tento ver todos os lados e me colocar no lugar da pessoa. Acho que é isso que falta hoje em dia. Se as pessoas se colocassem mais no lugar do próximo, entenderiam mais. O problema é que as pessoas, na maioria das vezes, querem falar sobre o que não vivem e não sabem. Vivemos em tempos, situações, lugares, culturas, estilos de vida diferentes, então, antes de apontar o dedo, tente se colocar na realidade do próximo. Se todos realmente fizessem isso, o mundo seria melhor. Se vejo que a pessoa não quer diálogo, pensa só na visão dela e não se coloca no lugar do outro, eu deixo a pessoa falando sozinha. Não vou falar com uma pessoa armada, que só consegue ver o seu ponto de vista, o que ela viveu, a sua “verdade”.
As pessoas pedem conselhos para a senhora?
Geralmente, as pessoas pedem conselhos de como se assumir trans. E me desejam força e dizem que não estou só. Mas, em geral, as pessoas me amam ou me odeiam. E é bom que seja assim, não gosto de meio termo. Estou bem longe de ser uma pessoa hipócrita e santa… Sou uma pessoa cheia de defeitos.
O que aprendeu de mais valioso com a militância?
Aprendi a filtrar o que me dizem, pois cada um tem uma vivência e uma visão diferente do que penso. Pego o que vejo como maldade e dou um sorriso, pois o remédio contra o mal é a indiferença. Aprendi que nem sempre vou agradar a todos e que isso é natural. Isso me fez ficar mais forte. Em tudo na vida não há unanimidade, mas sim pontos de vista.
* Estagiária sob supervisão de Humberto Rezende
Um protesto indignado nas redes sociais tornou a jornalista Nana Queiroz, 31 anos, uma das feministas mais conhecidas não só no Brasil, mas no mundo todo. Em 27 de março de 2014, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou o relatório Tolerância Social à Violência Contra as Mulheres, um estudo que trazia, entre vários dados, duas conclusões que chamavam muito a atenção.
A primeira era a de que 58,5% dos brasileiros diziam acreditar que, se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros. A outra apontava que 63% concordavam com a frase “Mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas” — esse índice seria, mais tarde, corrigido pelo Ipea para 30%.
Perceber que grande da população do país ainda vê a mulher vítima de violência como responsável pelas agressões sofridas causou revolta em Nana, que bolou uma campanha para protestar contra essa mentalidade. Com um post no Facebook, ela convocou mulheres a postarem fotos pessoais com os dizeres “Eu não mereço ser estuprada”. A adesão ao protesto foi maciça, repercutindo no mundo inteiro, assim como a foto de Nana sem camisa em frente ao Congresso Nacional com os dizeres da campanha escritos nos braços.
Ali, Nana não só tornou público seu feminismo, iniciado ainda na infância, como se transformou em uma das mais ativas vozes pelos direitos das mulheres no país. Da experiência, surgiu uma revista on-line feminista,AzMina, e uma série de projetos ancorados na publicação, como campanhas para o fim do assédio no carnaval e a recente ação no Dia das Mulheres com o time do Cruzeiro, que entrou em campo com camisas que traziam dados sobre a violência contra as mulheres brasileiras. Ela também concluiu o livro Presos que menstruam, sobre as condições que as mulheres enfrentam nas penitenciárias do país.
Porém, o espaço maior para lutar pelo feminismo, trazido pela campanha, veio acompanhado de ódio e tentativas de intimidação. Nana foi alvo de mensagens tão violentas quanto grotescas, sendo que muitas a ameaçavam justamente de estupro. A agressividade das reações levou até a então presidente, Dilma Rousseff, a se solidarizar com ela.
Na entrevista a seguir, a jornalista nascida em São Paulo e casada com o também jornalista João Fellet, conta que as ameaças frequentemente voltam, mas ela não dá sinais de pensar em parar. Só quer continuar a militar e a ser jornalista ao lado de suas companheiras da revista AzMina. “Elas são maravilhosas, pessoas extremamente competentes. Elas são demais, elas são meu motor. Eu não sou nada sem elas”, elogia.
Como foi a descoberta do feminismo? Na época da campanha Eu não mereço ser estuprada, a senhora já se considerava feminista?
Eu sempre me considerei feminista. Eu acho que o feminismo é o estado natural das coisas. Eu acho que a gente é socializada para acreditar que o machismo é o estado natural das coisas, que existe coisa de homem e coisa de mulher, mas, no fundo, isso não é verdade. Aos 7 anos, meu pai me pediu para lavar a louça e eu disse: “Tudo bem, mas você também vai ter de começar a lavar a louça, porque eu nunca te vi lavando”. Eu não entendia por que a louça deveria ser minha e não do meu pai. Acho que a campanha Eu não mereço… foi só a manifestação pública do meu feminismo. Na faculdade, eu já tinha começado a escrever o Presos que menstruam, que é um livro feminista; na especialização que fiz na UnB (Universidade de Brasília), eu estudei teorias feministas… Então não teve um momento de revelação, porque não houve um momento de desconstrução de coisas que o machismo havia me convencido de que eram normais.
O que é feminismo?
Feminismo para mim é uma decisão político-filosófica de que a igualdade entre homens e mulheres deveria ser o estado natural das coisas e que você se dispõe a se transformar e a transformar o mundo ao seu redor, fazer o que estiver ao seu alcance, para que isso se torne cada vez mais real.
Como surgiu a campanha Eu não mereço…?
Foi por conta da pesquisa do Ipea que mostrou que muitos homens acreditam que mulheres que mostram o corpo merecem ser estupradas. Aí, um colega de trabalho falou assim: “Nossa, quando a Nana vir isso, ela vai ficar enfurecida”. E ele leu a notícia em voz alta. E eu: “Nossa, sabe o que dá vontade de fazer? Sair andando nua na rua e gritando: ‘Eu não mereço ser estuprada, não mereço ser estuprada!’. E aí eu falei: ‘Olha, vou fazer isso, só que nas redes sociais, porque é mais seguro’ (risos).
A senhora se surpreendeu com a reação agressiva de parte da rede social quando lançou a campanha?
Claro que a reação me espantou muito, como sempre me espantam as reações de ódio que eu enfrento na internet. No ano passado, teve um dia muito duro para mim, quando morreu um ex-namorado que se tornou um grande amigo, que eu amava muito. E naquele dia eu fui atacada por vários bolsonaretes, bolsominions. Caiu meu acesso à rede, eu tive dificuldade de pegar informações sobre o velório. Foi muito doloroso aquilo. E vira e mexe essas coisas acontecem. Fico bestificada com o quanto as pessoas conseguem desumanizar os outros na internet. É bem difícil mesmo.
A perseguição é cíclica? Ou está ligada a momentos de maior exposição?
A perseguição é cíclica. Às vezes, ela vem por causa de alguma campanha específica que a gente faz, de algum artigo que eu escrevo, de alguma palestra ou entrevista que eu dou. Às vezes vem porque alguém resgatou alguma coisa muito antiga que vem à tona e então resolvem me pegar pra Cristo. Mas eu não sei nem explicar quando vem ou não vem. Graças a Deus faz algum tempo que eu não sofro nenhum tipo de ameaça ou ofensa, mas se você quiser alguns registros eu fiz questão de não apagar, em fotos minhas (no Facebook) ainda estão lá vários comentários escrotos. E na TV Folha também, para eles eu fiz um vídeo em que eu li em voz alta algumas mensagens que recebi, com a do cara que disse que, com perdão do meu francês, ia enfiar o pau dele tão forte no meu cu que o pau dele e as bolas iam sair pela minha boca, e eu ia precisar de Hipoglós.
A revista AzMina foi consequência desse engajamento e da repercussão?
Sim, AzMina são fruto do Eu não mereço ser estuprada. A campanha me mostrou que nós, mulheres, estamos preparadas para outro tipo de discurso, de conversa. Eu comecei a conhecer mais mulheres, ver discussões que apareciam na minha timeline e perceber que elas estavam preparadas para muito mais do que as revistas femininas estavam oferecendo para elas. Eu pensei: ‘Vamos fazer uma revista feminina de jornalismo investigativo, de jornalismo profundo, de jornalismo crítico’. E aí AzMina nasceu.
Quais são as campanhas ou matérias d’AzMina que a senhora destaca?
Acho que as melhores coisas que a gente faz são as bolsas-reportagem, como a gente chama, que a gente publica uma vez por mês, com uma grande reportagem jornalística. Eu destacaria, entre elas, a série sobre o mito do aborto legal, que é tão dificultado no Brasil, feita pela Carol Vicentin e vencedora do prêmio da Associação Brasileira de Hospitais. Também a reportagem especial sobre o estupro de crianças calungas, em Goiás, que ganhou um prêmio da Universidade do Texas, e também um grande balanço que fizemos das Delegacias da Mulher no país, na qual descobrimos muitas coisas, inclusive que algumas delas eram mentira, que o governo mentia sobre a existência de delegacias que nunca saíram do papel. Além disso, eu acho que você deve ter visto que no Dia da Mulher o time do Cruzeiro entrou com as camisas com os números refletindo a situação difícil que a mulher enfrenta no Brasil. E foi AzMina que organizou isso com o Cruzeiro. É uma das coisas que a gente tem mais orgulho. Tem também a campanha carnaval sem assédio, que a gente é uma das autoras. Este ano eu fui para o carnaval de rua em São Paulo depois de passar dois anos no exterior e eu achei que era outra realidade, era outro carnaval. E eu fiquei muito orgulhosa, porque eu senti que a gente era parte disso.
Como é o trabalho da equipe?
A coisa mais incrível d’AzMina é que ela só existe porque é um monte de mulher que conseguiu superar a questão da competitividade feminina, sabe? Porque a questão da competitividade feminina é encucada na nossa cabeça desde cedo. E aí a gente acha que, se a outra brilhar, não vai sobrar espaço para gente. A mãe da gente não fala simplesmente que você está linda. Ela fala: “Você vai ser a mais linda da sala”. E esse ter de ser mais do que a outra nos constrói, nos socializa para a disputa pelo homem e pela atenção social, que tem de ser em detrimento da outra. E a maior qualidade da nossa equipe é que existe uma superação disso. Elas são maravilhosas, pessoas extremamente competentes. Elas são demais, elas são meu motor. Eu não sou nada sem elas.
Na entrevista com a Lola Aronovich, ela disse que recebe muitos depoimentos de mulheres assediadas, exploradas, discriminadas que acabam procurando nela uma forma de ajuda. Isso acontece com a equipe de vocês?
Acho que a parte mais difícil do trabalho n’AzMina é ler os e-mails que chegam de mulheres que sofreram abuso; ou que engravidaram e foram abandonadas e não têm como criar essa criança nem conseguem acesso ao aborto seguro; ou que estão em relacionamento abusivo e não conseguem sair daquilo. É uma angústia muito grande porque a gente não consegue responder esses e-mails, porque é um volume muito grande. Tem dia que eu choro, sofro. Se eu parar para responder essas pessoas que me escrevem, eu não vou conseguir revelar tantas coisas que é importante a gente trazer a público. Tem um trabalho difícil aí, de tentar entender qual é o meu papel no mundo e como eu vou ajudar essas pessoas. Eu vou ajudá-las indiretamente e não diretamente, porque é essa que é a minha luta. Mas entender isso não é fácil, porque tem dias que a gente vê o indivíduo, o indivíduo que está ali na sua frente sofrendo. E se a gente para de ver esse indivíduo é porque a gente tá fodido da cabeça. Então é difícil, porque você não pode fugir da dor para não se tornar frio, mas, ao mesmo tempo, você não consegue… É um equilíbrio muito difícil de encontrar.
O que a senhora diz pra quem critica a ideia de jornalismo feminista sob o argumento de que “o jornalismo não deve ter lado”?
Gente, feminismo não é lado não. Feminismo é norma básica de ser humano. Eu fico inconformada com as pessoas que acham que feminismo é lado. Machismo é lado, é tomar o lado dos homens. Feminismo é equidade, é igualdade de direitos… Feminismo é, inclusive, tirar o lado do jornalismo, porque o jornalismo tem lado, que é o lado dos homens. Tanto que você pode olhar que as fontes são 90% homens, que os colunistas são 90% homens. As vozes que estão na imprensa são masculinas. Se isso não é ter lado, o que é ter lado, meu Deus?
Feminista, negra, pernambucana e mãe, Débora Maria da Silva Santos, 57 anos, transforma a dor da perda em força para lutar por justiça e verdade. Ela criou e hoje coordena o grupo Mães de Maio, que reúne outras 20 mulheres que, como ela, perderam os filhos em uma onda de assassinatos que deixou o estado de São Paulo em pânico em maio de 2006. Policiais militares foram apontados como suspeitos dos crimes, mas os inquéritos foram arquivados.
O filho de Débora, o gari Edson Rogério Silva dos Santos, 29 anos, foi morto na favela de Nova Cintra, em Santos (SP), com outros 16 jovens — a maioria negra — na noite de 8 de maio, quando se comemorava o Dia das Mães. As comunidades da Baixada Santista estavam sob aviso de toque de recolher. Segundo Débora, policiais avisaram que, “quem estivesse na rua seria considerado inimigo da polícia”.
Às 23h30, o filho dela foi atingido com três tiros — um no coração e dois no pulmão — por homens encapuzados em um posto de gasolina. Ele havia ido à casa da mãe buscar remédio e depois voltaria para casa. Débora soube da morte de Edson pelo rádio, no dia seguinte.
Após o crime, Débora entrou em depressão e precisou ser internada. Durante sua recuperação, conta que teve uma visão que a motivou a criar o Mães de Maio, inspirando-se no nome do movimento argentina Mães da Praça de Maio. “Eu vi um bebê roxo em meus braços. Meu filho me pediu para lutar pelos irmãos que estavam vivos”, lembra. Sua luta começava ali.
Ao receber alta, Débora entrou em contato com outras mães que tiveram filhos assassinados naquela semana de maio. Desde então, elas viajam pelo país e pelo mundo no combate a crimes cometidos pelo Estado. O grupo se tornou referência para outras famílias da periferia, que sofrem com a perda de pessoas queridas vítimas do abuso de autoridade do sistema brasileiro. Além da causa do extermínio, elas trabalham também em defesa dos direitos da mulher, dos negros e da população LGBT.
Débora é mãe de três filhos e, durante um tempo, continuou morando com duas filhas na mesma comunidade onde ocorreu a chacina. A frequência de viagens aumentou e ela precisou se mudar. Largou a casa e o casamento para viver da luta.
Como foi a morte do seu filho?
Foi em 2006, no Morro de Nova Cintra, na periferia de Santos, em 2006, quando ocorreram alguns ataques promovidos por agentes do Estado. Foi uma reação de grupos de extermínio com a participação de agentes do Estado a ataques da organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC). A maioria dos mortos era de jovens negros moradores da periferia. Vários agentes foram mortos nas ruas. Como retaliação, os policiais saíram pela periferia matando quem estivesse fora de casa. Eles pararam São Paulo para matar. Teve toque de recolher, a população foi toda para dentro de casa e quem estava na rua era “inimigo da polícia”, disseram. Na Baixada Santista foi onde mais pessoas morreram: 600 em uma semana. Segundo testemunhas, meu filho foi abordado em um posto de gasolina por duas viaturas com homens encapuzados. As testemunhas disseram que, durante a abordagem, ele respondeu que era trabalhador, mas mesmo assim o mataram, o chamaram de “ladrão”. Foi uma morte traiçoeira.
Houve algum julgamento?
O mais revoltante é que todos os inquéritos foram arquivados. O processo do meu filho foi ainda mais demorado, porque eu pedi para o Ministério Público identificar qual viatura e armamento foram utilizados pelos policiais no dia de sua morte. Até hoje, não engolimos o que aconteceu. Antes do meu filho morrer, na parte da manhã, um policial militar da família alertou a gente que quem estivesse na rua era inimigo da polícia. Ele pediu que a gente avisasse para a família e para as pessoas “de bem”. Mas isso foi de manhã, muito cedo. Quem imaginaria que ainda ocorreria às 23h30? É muito esquisito. Penso também que talvez tenham focado a moto dele, que era o que ele tinha de mais valioso.
E como foi sua reação?
Eu caí em uma cama de hospital com depressão, porque foi muito triste. Eu queria matar o culpado. No quinto dia de internação, meu filho apareceu para mim e me arrancou da cama. Eu cheguei a pensar que era efeito da medicação, não dei muita importância. Mas, no dia seguinte, eu vi um bebê roxo no meu braço. Meu filho me pediu para lutar pelos irmãos que estavam vivos. Foi isso que eu fiz e faço até hoje
Como a senhora fundou o coletivo Mães de Maio?
Depois que meu filho apareceu para mim, eu procurei as mães que perderam seus filhos na mesma tragédia para, juntas, buscarmos por justiça. Atualmente, somos 20. Na época, o Estado chegou a prender duas delas. Eu depus em defesa de uma delas, mas o juiz deu prisão arbitrária. Há 11 anos eu sei que eu sou uma ameaça para o sistema.
A senhora tem medo?
A cultura do medo nunca vai existir para mim. Eu não devo nada para ninguém, são eles quem me devem. Enquanto eu estiver viva, não vou parar. Meu legado vai comigo para o túmulo. Antes de me envolver com a causa, eu era muito reservada e sempre tive liberdade. A minha luta é por justiça.
Como o coletivo recebe apoio?
É um movimento sem partido. O apoio que tivemos no início era de sindicalistas. Foi fundamental, principalmente porque um dos líderes foi criado com o meu filho. Ele entendia a minha dor. Depois que o movimento ganhou força, vivemos com apoio das universidades, que abriram as portas para humanizarmos os profissionais e os alunos. Mas a nossa luta acontece todo o dia, em qualquer lugar, com qualquer pessoa.
Eu me alimento da luta. Se não fosse ela, se não fosse essa força, eu não estaria aqui falando com você. Algumas Mães de Maio foram mortas e até mutiladas. Você acha que devemos parar? O culpado é o Estado. Ele deve ter responsabilidades.
O que é a militância para a senhora?
Minha vida. Eu me alimento da luta. Se não fosse ela, se não fosse essa força, eu não estaria aqui falando com você. Algumas Mães de Maio foram mortas e até mutiladas. Você acha que devemos parar? O culpado é o Estado. Ele deve ter responsabilidades.
Então houve perseguição.
No começo, eles tentaram me intimidar ligando o giroflex e a sirene. Eu sempre olhei dentro dos olhos deles e nunca me intimidei com a farda e nem com a viatura. Jamais me intimidei por causa deles, do machismo e do sistema, caso contrário, eu nunca teria entrado nesse movimento. As Mães de Maio cresceram pela força, e eu vou continuar com essa luta.
É mais difícil ser ativista mulher?
Sim, é muito difícil, mas não é impossível, porque eu bato de frente com qualquer um. A gente sofre perseguição de alguns movimentos, principalmente os que têm homens na linha de frente. Mas já estou acostumada. Eles vão ter de aprender a lidar com isso.
A senhora se considera feminista?
Claro. Eu sou feminista desde que saí de casa, quando tinha 14 anos. Meu pai queria que eu fosse da mesma religião que ele, mas eu neguei. Eu não acredito em regras e imposições, eu acredito no respeito. No meu casamento foi assim, por exemplo. Acredito que quem vai transformar e humanizar esse sistema são as mulheres. E os homens serão obrigados a nos acompanhar.
A senhora conseguiu aliar a vida pessoal à militância?
Não. Eu fui casada por 21 anos e precisei me separar, porque meu ex-marido tentou colocar regras e mandar em mim. Ele não entendia minha missão na militância. Preferi terminar, porque minha luta é por justiça e ideologia. As minhas filhas até me apoiam, mas ficam distantes. Não moro mais com elas, porque viajo pelo país e pelo mundo.
O que a motiva a continuar?
Continuo pela justiça e pela memória do meu filho. Eu tenho um irmão que desapareceu durante a ditadura militar, então minha família ficou com medo de que o mesmo acontecesse comigo. Mas eu nunca vou conseguir esquecer a morte do meu filho. Eu tive o dom de ser mãe. Por isso o Estado vai ter de me engolir.
Negra, Djamila Ribeiro começou a recusar o silêncio ainda criança. Do pai militante, ela não só recebeu o nome africano como também força para lutar contra o machismo e o racismo na infância. “Os meninos não queriam dançar comigo porque eu era ‘neguinha’, riam do meu cabelo. Eu sempre me defendi”, recorda.
A luta continuou quando ela passou a integrar a Casa de Cultura da Mulher Negra, aos 19 anos. Hoje, aos 36, ela é uma das principais vozes do feminismo negro no Brasil. Mestre em filosofia política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), Djamila usa a palavra “resistência” — repetida muitas vezes nesta entrevista — como forma de combater as perseguições e ainda se fortalecer.
Por não ter medo de falar sobre feminismo, racismo, apropriação cultural, ela se destacou na internet. A militância a levou a um cargo político: foi secretária adjunta de Direitos Humanos em São Paulo, durante o governo de Fernando Haddad. Hoje, apresentadora de tevê, colunista na revista Carta Capital e pesquisadora, ela joga os holofotes ao feminismo negro, o que costuma despertar a fúria on-line.
Um grupo de haters, como são chamados os disseminadores de ódio na rede, organiza ondas de ataque a feministas. Eles se unem para tentar tirar páginas do ar, fazer comentários em massa e até vídeos com ameaças. Djamila foi alvo dessa gangue por um ano e meio, quase diariamente. Os insultos racistas e machistas chegaram até as mensagens privadas no Facebook, no perfil pessoal.
Mesmo achando que tudo isso já estava indo longe demais, ela preferiu não acionar a Justiça e ignorou todas as ofensas para seguir lutando. Embora a perseguição seja assustadora, ela não é uma grande novidade para Djamila: “Existe um incômodo com mulheres negras que pensam, marcam sua posição. Tem um inconsciente coletivo de que mulher negra deve ser subalterna”, analisa.
Seu pai é militante também. O que a senhora aprendeu com ele? Como foi lidar com o combate ao racismo e ao machismo na infância?
Meu pai é militante, daí meu nome africano. Ele sempre falou o quanto a gente era bonita, e isso fez com que eu me defendesse desde cedo, mas não impediu que eu sofresse racismo na infância, ficasse magoada. Como criança, não absorvia essas questões. Na festa junina, nenhum menino queria dançar comigo porque eu era “neguinha”, riam do meu cabelo. Eu sempre me defendi.
O que é feminismo para a senhora?
É pensar em um modo de nomear a identidade. Classe, raça e gênero se cruzam, e não dá para pensar nisso de forma isolada. Durante um tempo, privilegiou-se o discurso das mulheres brancas, não das mais vulneráveis. Entendemos que somos diferentes, não partimos do mesmo ponto.
Como foi o seu primeiro contato com essa luta?
Em Santos, trabalhei na Casa de Cultura da Mulher Negra. Eu tinha por volta de 19 anos. Trabalhei lá por quatro anos, inclusive na revista da entidade. Tive contato com militantes mais velhos, viajei, participei de eventos. Ensinaram-me de modo lógico que a questão LGBT também deveria ser negra, já que existem negros nesses espaços. O mesmo com o feminismo. Os movimentos estão em caixinhas e não pensam em sujeitos que acumulam identidades. Não é somente pensar na questão das mulheres, mas em outro projeto de sociedade, que combata todos os tipos de opressão.
É o maior desafio…
Ainda há muita resistência em pensar essa questão, mas isso vem com perda de privilégio. Nem sempre as pessoas querem perder isso. As pessoas vêm com um discurso raso de divisões, quando a sociedade já é dividida.
Muitas pessoas refutam o feminismo negro, dizem que serve para segregar. Como a senhora responde a esse argumento?
Vivemos em um país com três séculos de escravidão, em que mulheres negras foram subjugadas. Depois, continuaram escravas, sendo domésticas, maltratadas, exploradas. Somos todas mulheres, mas foram as negras que cuidaram da casa e permitiram que as brancas pudessem trabalhar fora. Não perceber essas diferenças é contribuir para a manutenção do status quo. Não há problemas de mulheres atrizes na tevê, mas quantas são negras ou não estão reforçando estereótipos? Mulheres brancas ganham 30% menos que homens brancos, mas ainda ganham mais que homens negros. E as negras estão em um lugar ainda mais vulnerável.
A senhora já sofreu alguma perseguição em função da militância?
Quando eu comecei a militar, não tinha tanto isso da internet, não discordavam de forma tão agressiva. Com a internet, um hater passou a printar tudo o que eu falava, organizou ataques à minha página. Eu fechei meu Facebook para comentários externos, mas, ainda assim, ele criou uma página para atacar a minha. Fizeram vídeos me atacando, pedindo para as pessoas me xingar. Programavam ataques, denunciando meus posts no Facebook até a página cair.
Qual era o teor desses ataques?
Pegavam todos os meus artigos para tentar me rebater, dizendo que eu era desqualificada, que eu só havia me formado porque as pessoas tinham pena de mim. Me chamavam de racista reversa, diziam que eu odiava brancos, que eu era burra, não sabia do que falava. Eles iam ao site da revista Carta Capital para dizer que eu era a pior colunista. Tudo sempre no sentido da desqualificação intelectual, o que é muito comum. Eles me desafiavam, mas eu nem dei bola.
A senhora acha que, por ser negra, as perseguições são mais intensas e rotineiras?
É mais intenso e é diferente no tipo de xingamento. Existe um incômodo com mulheres negras que pensam, marcam uma posição. Tem um inconsciente coletivo de que mulher negra deve ser subalterna. Os xingamentos machistas são pesados, sempre querendo me colocar como inferior, uma lógica do tipo “Como ela não sabe o que está fazendo, não tem capacidade de estar nos espaços em que estamos”.
A senhora sente medo? Como lidou com essa onda de ataques?
Não me dá medo. Pensei em acionar essas pessoas judicialmente, achava muito pesado porque era todo dia, toda semana, por um ano e meio. Quando estava passando dos limites, conversei com advogadas feministas e achei melhor não fazer nada. Parei de dar ibope e passei a ignorar tudo o que a pessoa fazia, porque era cansativo. Mas nunca deixei de ir a lugar algum.
Por que desistiu de acionar a Justiça?
A gente sabe o quanto o Judiciário é difícil com essas questões. É um sistema que não foi feito para nos atender. Seria ainda mais cansativo. Acabariam achando que não era uma violência. Esses ataques são uma tentativa de nos enfraquecer. Em muitos casos, enfraquece mesmo, muita gente acaba saindo desse cenário. Para mim, serviu para fortalecer.
O que pode ser feito para que se acredite na mulher?
O Judiciário é feito por homens brancos de grupos privilegiados. É muito difícil que nossas pautas sejam atendidas. Temos que trabalhar na educação. Os homens se sentem confortáveis para violentar e não são punidos por isso. O trabalho de base é essencial. Enquanto não entenderem que a mulher é um sujeito, não seremos protegidas de fato.
Mesmo com tantas dificuldades, o que a motiva a continuar na militância?
É estar muito em contato com as feministas negras, estabelecendo uma relação de acolhimento muito importante. Reconheço muito do que já foi feito. Muitas mulheres preferiram morrer a ser escravas. Muitas mulheres lutaram. E seguimos lutando.
A senhora acha que há outros caminhos em tempos de conservadorismo tão grande?
A gente vive um período preocupante em relação às políticas públicas. Não nos resta outra opção que não seja resistir. Vamos continuar nos mobilizando de fato para lutar por esses direitos. Não existe outra opção que não seja mobilizar, resistir, fazer a disputa no campo político, com mulheres comprometidas.
Durante a gestão do governo Haddad, a senhora tinha uma ferramenta de transformação nas mãos, a chamada “máquina pública”. O que conseguiu implementar e quais são os principais desafios para a defesa dos direitos humanos dentro do governo?
Foi importante. Temos de estar nesses lugares. Não podemos ser apenas beneficiários de políticas públicas, mas as pessoas que estão ali pensando e executando essas políticas. Muita coisa foi feita, sobretudo na coordenação da juventude, para os jovens negros. Cursos foram feitos, eles recebiam uma bolsa em parceria com a Secretaria do Trabalho. Dentro das políticas LGBTs, muita coisa foi feita, como um programa para trans e travestis, entrega de quatro centros de atendimento para esse público. Fiquei muito pouco tempo, mas consegui fazer muitas coisas.
Feminista desde os 8 anos, Lola Aronovich é a autora de um dos blogs brasileiros mais acessados sobre o assunto, o Escreva Lola Escreva. Quem visita a página e lê seus textos logo percebe a paixão com que a professora na Universidade Federal do Ceará (UFC), de 49 anos, trata o feminismo. Como consequência, o reconhecimento. Como ônus, as perseguições. A militância da brasileira nascida na Argentina incomoda os antifeministas, que a ameaçam diariamente de estupro, tortura e morte. Ela já registrou 10 boletins de ocorrência, e a Polícia Federal agora investiga um desses casos.
A maioria dos ataques chega virtualmente. Outros acontecem por meio de telefonemas, com ameaças diretas a Lola e à família. Com perfis falsos e números privados, os perseguidores se juntam para atacar não só a ela, mas também às suas leitoras. O blog dela já foi, inclusive, retirado do ar, após uma mobilização de denúncias relacionadas ao material publicado — acusaram-na de publicar conteúdos pornográficos.
Diante de todas as perseguições que vive, Lola não se intimida; só se chateia pelo tempo e energia gastos para lidar com elas. A professora relata que chorou apenas em um desses casos: quando um site com discurso de ódio foi criado como sendo dela. Embora o blog verdadeiro dela tenha precisado de nove anos para, aos poucos, acumular milhares de seguidores, a página falsa logo viralizou. “A luta é muito desigual”, lamenta.
No blog, principal veículo para dar continuidade à militância, Lola escreve e tira dúvidas sobre o feminismo. É frequente o contato com leitoras, que a procuram para pedir ajuda em relação às situações cotidianas em que são vítimas do machismo.
Enquanto muitas mulheres largariam a luta por sentirem medo, Lola garante que os “mascus”, termo com o qual se refere aos homens misóginos, só a motivam a continuar. “Tem uma razão para eles me odiarem. Eu sou uma ameaça, e é claro que querem me calar. Mas isso não vai acontecer”, orgulha-se.
Lola já morou no Rio de Janeiro, em São Paulo, em Joinville (SC) e, depois de um ano fazendo doutorado em Detroit (EUA), foi morar em Fortaleza, onde leciona. Doutora em língua inglesa e literatura, Lola fez metade de uma graduação quando era mais jovem, em publicidade. Trabalhou como redatora publicitária durante sete anos, mas não completou o curso. Só depois dos 30 voltou à faculdade. Começou a dar aulas de inglês e resolveu começar a graduação em pedagogia para poder fazer o mestrado em língua inglesa e literatura.
O que é feminismo para a senhora?
Feminismo é a luta contra todas as opressões. Eu compartilho da definição que não é a luta apenas pela igualdade. É uma luta muito restrita. A gente vive em um sistema tão desigual, não só de gênero, mas racial e social. O conceito de igualdade ainda é restrito. É uma luta contra todas as opressões, mas, principalmente, a da mulher.
Como foi o seu primeiro contato com o feminismo?
Eu tinha 8 anos. Eu tenho diários daquela época onde escrevi que homens e mulheres poderiam, sim, fazer a mesma coisa, que as mulheres não eram inferiores. Eu já me considerava feminista nessa idade. Eu tive a sorte de ter pais progressistas. Eu conheci o feminismo antes mesmo de conhecer as mentiras ditas sobre o feminismo.
A senhora já escreveu sobre algumas perseguições que sofre. Elas ainda acontecem? Como foram?
Não dá nem para falar no passado. Eu sofro perseguições todos os dias. Começaram há seis anos e continuam fortes. São vários tipos de perseguições, como ameaças de morte, estupro e tortura. Em novembro, começaram a fazer boxing na internet comigo (o ato de rastrear os dados pessoais de uma pessoa, como endereço, telefone residencial, número de documentos, parentesco, nome de vizinhos e divulgar para cometer ações contra ela). Fizeram comigo e com leitoras minhas. Às vezes, quando eu tuitava para alguém que eu sequer conhecia, mandando um tuíte me solidarizando, por exemplo, essas pessoas iam atrás da mulher que recebeu a mensagem e faziam montagens pornôs com suas fotos. Depois, as publicavam em sites de prostituição e suingue.
Todas as perseguições são virtuais?
Além de encherem minha caixa de e-mail, meu blog e meu Twitter, eles divulgam meu endereço todos os dias. Também recebo trotes a qualquer hora do dia ou da noite.
A senhora já chegou a levar para autoridades oficiais essas perseguições?
Sim. Já fiz 10 boletins de ocorrência. Todos foram crimes cibernéticos, entre eles de ameaça, calúnia e difamação. Eu me ofendo mais com as calúnias. Já me acusaram corrupção na universidade e de vender remédios abortivos. Esse foi o caso que mais me marcou. Fizeram um site em meu nome, em primeira pessoa, oferecendo esses medicamentos e dizendo que eu fiz aborto em uma aluna minha, dentro de sala de aula. Você não sabe se ri ou se chora.
Houve ameaças mais sérias?
Em dezembro do ano passado, o grupo de haters mandou um email para o reitor da UFC dizendo que se eu (ou “porco imundo” como fui chamada) não fosse demitida, a universidade sofreria um atentado terrorista. Como afetaria a segurança de outras pessoas, eu e o reitor resolvemos levar a situação para a Polícia Federal, que está investigando.
A senhora identificou algum dos perseguidores ou eles mantêm perfis falsos na internet?
Eu conheço dois homens que me ameaçam e, inclusive, já estiveram presos em 2012. Eles foram detidos na Operação Intolerância, da Polícia Federal. Moradores de Brasília e de Curitiba, foram detidos porque eram autores de algumas páginas que faziam apologia à violência, sobretudo contra mulheres, negros, homossexuais, nordestinos e judeus, além da incitação do abuso sexual de menores. Apesar de ficarem um tempo na prisão, atualmente eles estão soltos e continuam com as perseguições. Eles mantêm um fórum anônimo, onde combinam os ataques. Para você ter uma ideia, as peças me avisaram da página e eu consigo acompanhar cada movimento deles.
A senhora sente medo?
Não. Durmo tranquilamente à noite, porque sei que são covardes. Enquanto eu sou uma mulher de verdade, com família, número de telefone e endereço, eles se escondem atrás de perfis falsos e fóruns anônimos. Eu fico muito mais abalada quando ameaçam meu marido, por exemplo. Machuca mais mexer com quem a gente ama. Eu divulgo só 10% das perseguições que sofro, porque sei que o objetivo deles é me calar. E isso não vai acontecer.
A senhora acha que, por não se enquadrar nos padrões, as perseguições são mais intensas e rotineiras?
Sim. Apesar das perseguições que querem minha morte, tem também aquelas cotidianas, “leves”, que eu, carinhosamente, apelidei de “reaças zoeiros”. Eles fazem parte de um outro grupinho nas redes sociais que seguem a linha dos “mascus misóginos”, mas mais “lights”. Eles também querem te calar, mas eles fazem isso usando um humor que, na verdade, não tem graça nenhuma. Me chamam de “gorda e feia”. Mas eu acho que mesmo se eu fosse a Gisele Bundchen, eles achariam outra característica em mim para abalar minha autoestima. Esse tipo de homem leva tudo para o lado físico, porque é um jeito de calar as mulheres, enfatizando a beleza e comparando-as ao padrão. Mas isso não adianta comigo. É uma atitude muito imatura, que não vai afetar uma mulher de quase 50 anos. Infelizmente, é muito ruim. Eles têm um perfil pré-definido de que feminista é tudo lésbica, gorda, mal amada. Eu não me enquadro, porque sou casada, hétero e bem resolvida. Talvez isso os irrite.
Essas perseguições são uma forma de assédio psicológico. A senhora faz algum tipo de acompanhamento?
Na verdade, não. Não me afeta muito. O que acho ruim é que gasto muito tempo e muita energia com isso. A única vez que eu chorei foi quando um site de ódio viralizou em meu nome. Eu senti raiva, porque tenho um blog que dedico tanto tempo, tanto trabalho, tantos anos, que demorou a ganhar força. Mas no caso da página fake, ela viralizou muito rapidamente. É uma luta muito desigual, e o apoio de companheiras de luta às vezes demora um pouco.
Se é tão doloroso, por que continuar na militância? O que a motiva?
Confesso que eu já pensei em parar. Mas eu sei que os ataques não parariam, eu ficaria um alvo ainda mais fácil. Fico imaginando que, se me matassem, como dizem que farão, haveria uma certa revolta e, ao menos, ocorreria uma investigação. No blog, minha maneira mais concreta de militância, eu mostro um pouco das ameaças que sofro. Eu também não paro porque tenho uma troca muito legal de carinho e solidariedade com as minhas leitoras, que motivam a minha militância.
Com a mudança de governo, houve um redirecionamento nas políticas?
A gente está tentando sobreviver ao baque, porque, apesar das manifestações contra o golpe, não está tendo tanta luta assim, ao menos não nas ruas. Antigamente, havia alguns avanços, tímidos, mas havia. Com esse novo governo, estamos assistindo, de longe, à perda de algumas conquistas. Claro que estamos lutando e não devemos nos deixar abater. Este ano, é importante que a gente lute para tentar manter o que já conseguimos e, em 2018, com as novas eleições, voltar a eleger outro candidato de esquerda.
Como a senhora lida com pessoas que pensam diferente sobre o feminismo? Num almoço de domingo, por exemplo, como se comporta?
Depende. No blog, nos comentários e no Twitter, muitas vezes eu fico sem paciência, porque sei que é um perfil de um “reaça”, que eu já sei que não vai ter muito diálogo. Na vida pessoal, eu me deparo com pessoas antifeministas, mas ainda assim muito poucas. Sou uma privilegiada. Às vezes, eu tenho alguns alunos que são machistas. Geralmente, eles abrem a cabeça e acabam pedindo desculpa.
O blog recebe muitos relatos de mulheres vítimas do machismo e dúvidas sobre o feminismo. O que isso significa para a senhora?
Eu me sinto muito especial por ler confidências de tantas meninas e mulheres que depositam em mim tanta confiança. Também fico feliz de perceber que as leitoras do blog estão cada vez mais jovens, o que mostra o interesse pelo feminismo desde muito novas. Ao mesmo tempo, é triste ver como o machismo afeta as mulheres de qualquer idade. Um dia desses, recebi um email de uma menina de 13 anos dizendo que havia sido escolhida a aluna mais feia da escola. Imagina o que isso faz com a autoestima dela, como influenciará seu crescimento, sua confiança e seu posicionamento perante a sociedade. Eu disse a ela que não se importasse com isso, porque nós, mulheres, somos muito mais que isso. A vida vai além dessa competição eterna de concurso de miss. Então, você consegue imaginar como eu me senti?