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Considerações sobre o que chamam de ‘ideologia de gênero’

22 de julho, 2016

Publicado originalmente por HuffPost Brasil, em 21 de julho de 2016.

Terry Eagleton é um crítico literário inglês. Bem-humorado e irônico, tem, entre suas criações, a frase “ideologia é como mau hálito, só o outro tem”. Passear pelas conversas sobre gênero, sexualidade, escola sem partido, religião nas escolas é enfrentar acusações de ideologia.

Ideologia virou sinônimo de ilusão, fantasia, mentira, ou ainda má-fé. Nessa onda de novos missionários nas redes sociais, a combinação “ideologia de gênero” parece ser tese sem necessidade de argumento – é sempre algo pernicioso para as crianças, algo que viola a liberdade das famílias ou a integridade das igrejas.

Como acredito que a conversa racional é mais poderosa para mover montanhas que a repetição de testamentos antigos, começo reproduzindo os argumentos dos que gritam “ideologia de gênero” para, depois, mostrar a tolice ou a ingenuidade dos que a proferem.

Ao assim arrumarem os espaços onde gênero poderia circular como uma verdade e não como uma ideologia, os ofendidos reconhecem a existência do gênero como uma forma de vivência dos corpos ou das sexualidades; a divergência é sobre o seu conteúdo e seu espaço de conversa – a casa, e não a escola.

Há, portanto, gênero; a saga é garantir que só uma interpretação circule no mundo. Acreditam em uma única forma de se viver o gênero – o binarismo macho e fêmea ou a reprodução biológica pela vagina no pênis – ou seja, seriam eles mesmos ideólogos do gênero, mas a partir de um único conteúdo: o de que haveria uma natureza dos corpos, e essa natureza seria sempre heterossexual.

Há outras expressões de ofendidos que também gritam ideologia de gênero – são os que gaguejam para pronunciar “gênero”: para anunciar a palavra maldita precisam de virulência, pois dói nas entranhas pronunciar o pecado. Em geral, só pronunciam a palavra gênero em combinação com outros vocábulos, vinculações que o dicionário ainda não reconhece: gênero vem sempre acompanhado de orifícios, fantasias, chicotes, nazismo, fascismo, gemidos (mimimi é o preferido), inferno, perucas, vacas ou sex shop.

A ordem não é bem esta, mas haveria um empório celestial de conhecimentos benévolos para a humanidade sobreviver ao gênero. Para esses sujeitos benévolos, não há nada de história ou cultura, pois desde sempre as mulheres foram Eva, e, os homens, caçadores.

Mas como nem todas as pessoas têm mau hálito – só algumas, para felicidade da saúde pública – nem tudo o que é pronunciado merece o título de ideologia. Para a conversa sobre gênero é fácil solucionar a controvérsia – se ideologia é uma forma de pensamento que oprime, distorce e falseia a realidade, a pergunta seguinte é: o que seria realidade?

Não há resposta que agrade a todos nós, mas tentarei uma que aproximará a parada gay da marcha para Jesus: a vivência. O real é aquilo que se vive e, no campo do gênero, são os corpos e as sexualidades.

As mulheres não precisam mais usar lençol com abertura para o pênis mover-se em uma relação sexual – as que preferirem podem usar holofotes em um motel. As mulheres podem dividir as tarefas domésticas com o marido e os filhos homens – está provado, só não sei se foi já assunto para o Prêmio Ignóbil da Ciência, que nem o detergente faz mal à saúde, nem a pia provoca disfunção erétil.

Não há livro sagrado que diga como devem viver os homens e as mulheres na intimidade de suas escolhas, e por isso gênero fala de todo mundo. Não é ideologia de gênero, mas vidas vividas no gênero.

PS: Para encerrar essa conversa sobre ideologia de gênero, peço socorro da expressão latina ridendo castigat mores. O riso liberta. Melhore os sentidos para se perceber antes de anunciar o mau hálito nos outros. Acredite: ideologia não é como o bafento que só sente o mau hálito dos outros – talvez, só você sofra dessa maldição, mas tranquilize-se: há remédio. Um deles é deixar o mundo mais cheiroso, florido e colorido. E a escola é um lugar formidável para descobrir outros cheiros.

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