A história de Sandra Queiroz será contada duas vezes. Na primeira, serei resenhista de voz da multidão que se esbanjou no falatório em notícias e redes sociais. Sandra é uma mulher de 37 anos, já tinha dois filhos, um vivia longe e outro perto, engravidou de um terceiro. Escondeu barriga de todos, patrões e amigos, pois talvez já planejasse o final dramático. Mulher trabalhadora, dizem os patrões, mas também tratada na casa em que vive como alguém “quase da família”. Sozinha e escondida, deu à luz em um banheiro de serviço. Ainda sem socorro, limpou-se, cortou o cordão umbilical, enrolou a recém-nascida. Ajeitou-se com uma sacola de papelão, abandonou a bebê ao pé de uma árvore nos arredores de bairro elegante em São Paulo. Rapidamente, foi descoberta pelas câmeras de vigilância e descrita como “mulher safada”, aquela que conheceu um sujeito em um forró e fez filho para rejeitá-lo.
Não conheço Sandra, mas, com as peças soltas de uma biografia extensa, me arrisco a contar a mesma história de outro jeito. Sandra Queiroz é mulher pobre, migrante nordestina, empregada doméstica em um estilo cada vez mais estranho para uma ordem dos direitos — não há casa para chamar de sua, pois Sandra trabalha e descansa no apartamento dos patrões. Quando saiu do interior da Bahia, deixou o filho mais velho com os avós, pois não seria fácil sobreviver em cidade gigante com uma criança. Em São Paulo, conheceu um tipo anônimo, teve a filha de três anos, a quem a patroa “trata com o maior carinho” e oferece “quarto aconchegante com muitos brinquedos”.
Sandra carrega outra marca da vida fragilizada, o sobrepeso. O corpo foi o segredo, e a solidão, de nove meses — a mudança nas formas e contornos do corpo não provocou os olhares ou a surpresa das pessoas com quem convivia. Manteve-se inviabilizada na cozinha ou na área de serviço, na padaria ou no supermercado. Sandra firmou-se no trabalho, seu medo anunciado era ser demitida. Não sabemos se sentiu enjoos ou qualquer mal-estar típico da gravidez — o corpo escondido não teve queixas ou ansiedades compartilhadas com quem vivia. Manteve-se boa mãe, disse a patroa aos jornais.
O parto foi em um final de semana. Não sei bem a razão, mas imagino a cena que descrevo como tendo sido à noite — o pior desespero aguarda a madrugada para se anunciar. As contrações chegaram, Sandra já teve filhos, é experiente no corpo grávido. Sozinha e sem gritos, deu à luz, limpou a recém-nascida, enrolou-a no que tinha, pois não houve isso de enxoval ou escolha de nome. Talvez tenha olhado muito para a filha, pensado no que fazer, para onde ir. Há ainda a menina de três anos — não sabemos se estava por ali ou distante, se dormia ou acompanhava a cena. Mas não custa imaginar que Sandra ainda tivesse que acomodá-la, enquanto o parto doía ou ardia.
Nove meses de segredo a fortaleceram no desespero do abandono. Sandra não teria condições físicas e emocionais de cuidar daquele ser miúdo e dependente. Aborto não foi uma opção, e a entrega para adoção exige o confronto com o rosto do inquisidor — como não ser mãe? Como assim abandonar um filho? Por que não pensou antes de engravidar? Não quero aumentar a lista das perguntas que a multidão torquemada anunciou como soluções prévias ao desespero. A verdade é que Sandra teve um encontro casual em um forró, com um tipo que desconhece nome e sobrenome, e que, consultado sobre cuidar da filha, anunciou “não ter certeza de que era o pai”.
Sandra pariu o bebê; ela é a mãe. Disso sabemos e temos certeza, pois as câmeras de vigilância para a guarda de propriedade filmaram Sandra, a mãe abandonadora. As câmeras não filmaram o passado de perdição daquela mulher de blusa florida e bermuda que apertava o corpo recém-parido. Na fotografia da delegacia, o rosto está coberto por uma manta preta com renda branca, talvez a mesma que enrolava a bebê para o abandono. A barriga de uma gestante recente ainda se anuncia; o corpo é de uma senhora, mas são as mãos de Sandra que declaram o desespero: uma está espalmada no rosto para lhe assegurar que o manto da vergonha não cairá; a outra segura com força o policial que a conduz.
É assim que eu descreveria Sandra Queiroz de outra forma. Em respeito à recém-nascida, iniciarei por ela. Aquele ser miúdo deve estar agora em outra família, entre pessoas que terão melhores condições de cuidar dele, que ajeitarão seu presente de forma que esse instante terrível seja deixado no passado. Ignoro qualquer sentido de “safada” para Sandra: ela é uma mulher que perdeu as esperanças. A vida cotidiana é essa, a de sobreviver no chão que faxina, a de dormir na casa que limpa. Um filho distante, uma filha no trabalho, não havia condições de uma terceira. Aborto não é escolha no Brasil, adoção é gesto vergonhoso para mulher que já é mãe. Perdida entre o segredo e o desespero, Sandra transforma-se em uma mãe abandonadora, tendo sido, desde sempre, uma mulher abandonada.
Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira). Este artigo é parte do falatório Vozes da Igualdade, que todas as semanas assume um tema difícil para vídeos e conversas. Para saber mais sobre o tema deste artigo, siga https://www.facebook.com/AnisBioetica.
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Autor: Debora Diniz