O livro conta histórias de cinquenta mulheres, um grupo pequeno se comparado à multidão de mulheres nos presídios brasileiros. “Cadeia: relatos sobre mulheres” é o livro que acabo de publicar — o estilo está à espera de ser descrito por quem tem autoridade de crítica, mas, nos meus termos, foi um experimento acadêmico. A linguagem é de contos curtos; o vocabulário, um misto entre o que fui capaz de aprender e transformar em escrita; os encontros, instantâneos da vida entre grades, vividos no Núcleo de Saúde do único presídio feminino da capital do país.
Sem medo da pós-modernidade, descrevo os contos como reais — foram experiências vividas e descritas no instante do dito pelo encontro de uma presa com um jaleco branco. O presídio da capital do país organiza os poderes e as localizações pelas cores: branco é cor de cuidador da saúde ou de visitadora de quinta-feira; laranja é cor de presa; preto, da vigilância. No livro, as presas têm nomes que não foram os próprios dos relatos, mas de outras que, como elas, já viveram pelo presídio. Um espólio de doze mil nomes me ofereceu o dicionário para a substituição. A troca seguiu as regras da estética original — se muitos “y”, “w” ou “l” faziam parte do nome original, o substituto os respeitou.
As histórias eram para ser de saúde. É certo que nem mesmo os jalecos brancos sabem bem como descrever saúde. A Organização Mundial de Saúde tentou um conceito bonito — estado de bem-estar físico, mental e social. No presídio, saúde tem sentido preciso e exclusivo de quem sobrevive em privação de liberdade: é abandono. Jaleco branco cuida das dores do corpo — coceiras e desgraceiras do sexo são as bagaceiras mais comuns —, mas cuida muito da perdição deixada pela máquina do abandono que é um presídio. Ali estão não só as mulheres banidas, isto é, aquelas afastadas do bando, mas também aquelas abandonadas pelos amplos regimes de precarização da vida.
O perfil de uma presa é aquele já conhecido e, para anunciá-lo, talvez seja exagero recursar autoridade científica: é preta ou parda, jovem, com pouca escola e trabalho informal, com filhos miúdos, companheiro ou marido preso, e o crime é o do comércio ilegal de drogas. Esse é o perfil da bandida do presídio da capital do país — uma mulher comum das periferias das grandes cidades. No Distrito Federal, uma em cada quatro presas em regime fechado viveu em reformatórios na adolescência por conflito com a lei. São mulheres desprotegidas de nascimento, que atravessam a porta da máquina do abandono porque a justiça diz ser essa uma forma de reparação para o malfeito fora da lei.
Contei as histórias que ouvi e não vou repeti-las aqui, meu convite é para a leitura da multidão que transborda no livro. Quero só lembrar de Francisca, a mulher presa porque vendia pamonha com maconha. Conheci Francisca a caminho de uma comissão disciplinar no presídio. A falta era um atraso, mas as razões eram o sofrimento de quem havia ficado no fora: os cinco filhos sobreviviam sob os cuidados de Wallace, o filho mais velho, um menino magrelo de 16 anos. Francisca estava inquieta com o desaprumo familiar, por isso no trajeto do trabalho para o presídio fez uma pausa em casa, só chegando ao presídio mais de meia-noite — aquela era a razão do atraso. Wallace apresentou-se como guardião da família, pedia que os irmãos não fossem para abrigo, “Eu consigo”, era argumento suficiente para a súplica. O assistente social tomava nota do pedido, mas nenhum manual lhe explicou ser também aquele um dos sentidos de saúde.
Debora Diniz é antropóloga, professora da Universidade de Brasília, pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética e autora do livro “Cadeia: relatos sobre mulheres” (Civilização Brasileira).
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Foto: Torre, 2015 – Debora Diniz/Revista Liberdades
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Autor: Debora Diniz