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Um olhar humanizado na Cracolândia – Debora Diniz entrevistada por José Jance

22 de maio, 2017

Na esquina da maior Cracolândia da América Latina, está o Hotel Laide, uma pensão social para quem busca escapar do crack. Dona Laide, Brenda e Maria Paula recebem a mais nova habitante: Angélica, uma jovem mulher que vive na rua desde os sete anos. Essa é a narrativa do documentário “Hotel Laide”, dirigido por Debora Diniz, antropóloga, professora da Faculdade de Direito da UnB e pesquisadora da Anis – Instituto de Bioética.
O filme, financiado pelo Ministério da Saúde, conseguiu algo inédito: cenas de câmera aberta dentro da Cracolândia, no centro da capital paulista. Todas as imagens anteriores no fluxo eram feitas com câmeras escondidas.
O lançamento e primeira exibição pública do filme será este sábado, 20 de maio, no auditório da Defensoria Pública de São Paulo, a partir das 15h.
Nessa entrevista, a antropóloga conta sobre os desafios enfrentados para gravar o documentário, a realidade dos usuários de crack e o debate acerca das políticas de redução de dados.
José Jance – Debora, como surgiu a ideia para gravar um documentário sobre os habitantes da Cracolândia?
Debora Diniz – A história do documentário vinha a partir de uma disputa muito importante dentro do campo do debate sobre drogas, e da diminuição de danos para a droga: se a solução é internar ou se é encontrar um mecanismo de redução de perdas do sujeito dependente, especialmente do crack – que ele fique no território, na comunidade, que ele comece a sair da pedra e tomar banho, escovar os dentes. Do outro lado há uma narrativa psiquiátrica importante de retorno dos manicômios, de volta dos hospitais psiquiátricos para a internação. Naquele momento em que começamos a fazer o filme, havia uma disputa entre a prefeitura e o governo do Estado de São Paulo, um apoiava a própria ideia do fluxo e o outro queria internar.
JJ – Como a literatura enxerga esse cenário?
DD Hoje na literatura internacional em saúde mental a ideia do fluxo de uso e de manter o indivíduo na comunidade é quase um consenso. Por essa solução, ele pode diminuir o uso da pedra, em especial aqueles sujeitos mais vulneráveis. O filme vem dentro desse contexto, de uma disputa científica sobre o que fazer com a política de drogas, dentro de um debate em que a redução de danos é a peça mais importante.
JJ – Como foi sua chegada na Cracolândia? Quais desafios enfrentou para gravar o documentário?
DD – Eu chego no fluxo e começo a ficar por ali uns dias na tenda. A tenda é um território neutro, é onde não pode haver briga, ninguém pode usar droga. É onde alguém está precisando dormir e pode receber uma sopa. É um espaço pra descansar. Havia uma assistente social, Carmen Lopes, que é aquela que entra comigo no fluxo, e quem tinha um passe livre dentro desse espaço. O fluxo é o ambiente da Cracolândia. Você não entra ali desavisado, você não entra ali com uma câmera. Então eu começo a ficar com a Carmen até que eu mando um recado por um soldado, um sujeito que é assistente dos irmãos da liderança do fluxo, de que eu queria duas autorizações: uma para entrar e outra para filmar uma cena com a câmera aberta dentro do fluxo. Nunca quis usar a câmera escondida. Não uso câmera escondida. Aquela cena em que você me vê entrando com a Carmen é a calçada da direita, uma calçada proibida para a comunidade circular. Só circula ali quem vive no fluxo ou quem a comunidade aceitou, as lideranças, os “salve”. Eu tive um “salve” para entrar. E a calçada da esquerda, que é onde a dona Laide vem com o bebê, é a calçada por onde a comunidade caminha. Nos primeiros dias já na Cracolândia eu percebi que, quando uma criança passava, todo mundo gritava: “Ó o anjo, ó o anjo!” e escondia o cachimbo. Era essa a cena que eu queria fazer.
JJ – Como foi esse processo de autorização para gravar o documentário?
DD – Para eu conseguir entrar na Cracolândia, precisei de um “salve” das lideranças, e naquele momento eram dois irmãos gêmeos. Eu passo alguns dias negociando com eles, pedindo autorização. A minha autorização era dupla: entrar e circular em torno do fluxo com a câmera aberta. Até onde eu sei foi a primeira vez que a câmera entrou aberta, ou seja, explícita, dentro do fluxo. As imagens que se tem da Cracolândia são sempre de câmeras escondidas. Então essas são cenas genuínas e que poucas pessoas conhecem, como a que uma criança passa pelo fluxo e as pessoas gritam: “olha o anjo!”. Esse é um episódio muito importante para mim porque mostra a humanidade resistindo, mostrando suas formas de sobrevivência.
JJ – Qual é a história que o filme conta?
DD – A história que queria contar era a historia de alguém saindo da rua, do fluxo, e dormindo a primeira noite naqueles hotéis sociais (que eram cinco na época do programa “De Braços Abertos”). A Cracolândia de São Paulo é a maior da América Latina, se não for a maior do mundo. É lá onde eu encontro a Angélica, uma menina que vivia na rua desde os sete anos. Aquele era o primeiro dia dela no programa e tudo aquilo é a cena genuína dela entrando no hotel. Ela espera sozinha e quando entra no quarto a primeira coisa que pergunta é se pode tomar banho. Há um detalhe muito importante: até o momento do banho, o cachimbo dela estava ali na orelha; depois do banho, o cachimbo some. Quando você a vê um ano depois, ela está gordinha, a pele está brilhando.
JJ – Mas essa não é a única história contada no filme. Quem são as outras personagens que cruzam a vida da Angélica?
DD – Há uma segunda personagem no filme que é a Brenda. Ela é uma travesti. Há muitas travestis no fluxo. Ali são mundos que se cruzam: a saúde psiquiátrica, o uso de drogas e o sistema prisional. Há também a Dona Laide, proprietária do hotel. Ela foi uma senhora que no passado tinha um brechó e todas aquelas coisas que se veem no filme vieram do brechó dela. Existe uma fala da Brenda que é muito importante, porque ela conta como transformou o espaço do hotel numa casa, a qual ela limpa, da qual ela cuida, da qual ela arruma os quadros. E esse senso de pertencimento a uma comunidade é muito importante para as pessoas não serem “o crackeiro”.
JJ – Por que a redução de danos é a solução mais adequada?
DD – Se você colocar o endereço da tenda no mapa do Google, aparece “Zumbilândia”. Mas ao contrário do que as pessoas imaginam, de que aquilo ali é um lugar horrível, um lugar que dá medo, elas estarem ali em um quadrilátero de vigilância dá segurança de saúde pública e de segurança pública. É um fluxo de uso, é uma redução do uso da droga, mas permitindo que as pessoas fiquem no território. Eu tenho uma visão muito pessimista do fim da cena de uso, uma visão muito pessimista do retorno aos manicômios e aos hospitais psiquiátricos, bem como do tratamento compulsório e de internação. A Angélica mostra isso. Ela foi internada. Era remédio de manhã, de tarde, de noite. Não resolve. A Angélica é o rosto do que eu queria mostrar. É uma menina que aos sete anos vai para rua, passa pelo sistema prisional, está na rua quando vai morar naquela casa. Um ano depois ela ainda está na casa. Até quando a casa é queimada.
JJ – Quem e por que estão queimando os hotéis sociais?
DD – Inesperadamente para mim, de janeiro deste ano pra cá, os hotéis sociais estão sendo incendiados. Não tenho como dizer quem é que está queimando, o que está acontecendo, mas pôr fogo nos hotéis é queimar toda a possibilidade de redução de danos, de transição das pessoas; é queimar a possibilidade de pessoas vulneráveis dormirem naqueles lugares e terem uma vida. Elas todas foram realocadas para outros hotéis. Alguns dos habitantes voltaram para a rua. Isso é o fim de uma iniciativa que é lenta, que não tem milagre; de uma transição demorada, mas a qual não resta dúvida: é a única maneira de enfrentar a questão do crack.

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