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Quando presos se matam entre si, o Estado tem culpa

24 de janeiro, 2017

por Gabriela Rondon
Publicado originalmente no Jota

As novas barbáries que inauguraram o ano de 2017 já manchando de sangue os presídios brasileiros retomaram um debate desgastado sobre os direitos das pessoas presas: deve ou não deve o Estado indenizar as famílias daqueles que morrem violentamente sob sua custódia?

O Supremo Tribunal Federal dá resposta pacífica a essa pergunta desde pelo menos março do ano passado, quando o julgamento do Recurso Extraordinário com Agravo 638.467 condenou o estado do Rio Grande do Sul pela morte de um detento e estabeleceu repercussão geral para a tese. Mas a firmeza da jurisprudência da Corte não impede que a polêmica retorne.

Há senadora e ex-ministra afirmando que se solidariza com as famílias das vítimas, mas classifica a possibilidade de indenização de “inacreditável”, ao se perguntar “quanto mal [os detentos mortos] fizeram, quantas despesas já deram ao país”. Há desembargador afirmando que o “dever [de indenizar] é questionável, já que a ação nefasta ocorreu entre os presos, já organizados, ao que parece, em facções”.

Para a primeira, é possível uma resposta simples: ao dano que possivelmente causaram, as vítimas já estavam cumprindo pena arbitrada pelo sistema penal, a qual não inclui a possibilidade de vir a ser chacinado em uma cadeia superlotada – isso sem contar os inúmeros presos sem condenação, ou seja, a quem o Estado sequer havia ainda definido crime e pena e tiveram mesmo destino de morte cruel.

E se a senadora se referia ainda à indenização individual às vítimas, essa é previsão que já existe no Código Penal como um dos efeitos da condenação. Mas o dever de indenizar pelo dano do crime de nenhuma maneira exclui o direito de receber indenização por violência sofrida no cárcere. São danos e direitos distintos.

Para o segundo que duvida do justo das indenizações, é preciso retroceder na conversa para não se confundir: é ao Estado, e a nenhuma outra entidade, que se garante o dever de custódia sobre sujeitos encarcerados. Se há ou não “presos organizados” ou guerra de cadeia, é ainda ao Estado que cabe fazer cumprir o inciso XLIX do artigo 5º da Constituição Federal: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral.” É esse mesmo Estado quem falha quando não impede o massacre dentro das paredes de uma instituição total.

A lei de execuções penais é clara em enunciar que devem ser garantidos aos presos todos os direitos que não forem atingidos pela sentença condenatória: em regra esses são apenas o direito de ir e vir e os direitos políticos, temporariamente relativizados pelo tempo da pena de reclusão. A realidade dos presídios brasileiros mostra que, em verdade, são muitos outros direitos violados, mas para nos ater aos exatos termos da conversa: o direito à vida claramente não é um dos passíveis de suspensão.

Aqueles que acreditam na pena de prisão ou desejam que a lei seja cumprida em seu rigor devem ao menos também reconhecer os direitos que se garantem para manutenção do justo. Em um Estado democrático que não admite pena de morte nem prisão perpétua, um sujeito que adentra compulsoriamente uma prisão, se não for por fatalidade natural, tem de sair com vida. A pena não pode ultrapassar os termos de sua condenação.

Se facções continuam tendo poder de mando dentro de prisões ou se condições insustentáveis da vida em cadeias superlotadas levam a motins, há responsabilidade objetiva do Estado pelos mortos e feridos. Ainda que seja por omissão, há responsabilidade na incapacidade de cumprir com seus deveres básicos de administração carcerária que permitam às pessoas aprisionadas minimamente cumprir suas penas conforme parâmetros nacionais e internacionais de garantias fundamentais.

A tragédia dos presídios brasileiros é tremenda, mas não é acidente, como chegou a sugerir o presidente Michel Temer: é culpa do Estado.

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