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A população de maior risco à epidemia são mulheres pobres e negras do Nordeste do país

7 de março, 2016

Entrevista de Debora Diniz à FIOCRUZ

 

A epidemia de zika vírus tem colocado o Brasil em contato direto com suas dívidas sociais. O país que ocupa os primeiros postos entre as economias mundiais é o mesmo que perpetua as péssimas condições de vida que expõem grande parte da população à multiplicação de vetores, como o mosquito Aedes aegypti. Com a explosão de casos de microcefalia, o passivo brasileiro em garantir o direito à água se soma ao atraso no debate sobre os direitos reprodutivos das mulheres. Nesta entrevista, Débora Diniz, professora de Direito da Universidade de Brasília (UnB), defende que diante da dor das mulheres trabalhadoras, majoritariamente negras do Nordeste brasileiro que são atingidas em cheio pela tragédia, é chegada a hora de o Estado garantir alguns direitos: à informação, ao diagnóstico, à maternidade, à infância, mas também ao aborto. Para isso, a ONG feminista Anis – Instituto de Bioética, da qual Débora faz parte, pretende capitanear uma ação judicial no Supremo Tribunal Federal (STF). Em 2012, a ONG fez parte da ação que levou o STF a estabelecer a legalidade da interrupção da gravidez em casos de anencefalia. Neste caso, no entanto, Débora garante que a Anis não vai basear sua argumentação no direito ao aborto ligado a uma condição de saúde, o que, segundo críticos, poderia ser caracterizado como eugenia. “Não há eugenia na proposta, esse é um argumento que confunde a conversa”, afirma ela, que também aborda o “desrespeito” de algumas autoridades do Brasil e de outros países da América Latina em imputar a responsabilidade às mulheres, sugerindo que elas evitem engravidar durante a epidemia, e comenta posições conservadoras do Congresso Nacional.

 

Quais são os grupos, partidos, etc. que vão entrar com a ação no STF?

 

A Anis é quem coordena o grupo amplo de especialistas, acadêmicos e ativistas que prepara a ação. Tudo está ainda em fase de elaboração, mas a ação caminha para ser não uma ADI [Ação Direta de Inconstitucionalidade] e, sim, uma ADPF, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental .

 

Porque a opção pela ADPF, que é uma ação que tramita no STF e, frequentemente, demora para ser julgada, e não uma pressão no Executivo, por exemplo, ou uma construção popular de atos, etc.?

 

A proposta de uma ação judicial não impede que outras vias de mobilização sejam acionadas simultaneamente, e é o que temos visto acontecer com a articulação de um debate crescente em torno do tema. Mas o acionamento do STF parte também de uma compreensão de fundo sobre o que estamos vivendo: um cenário de violação de direitos fundamentais causado pela epidemia. Especialmente em um contexto em que os outros poderes não estão se articulando para oferecer uma resposta adequada a essas violações, a Corte Suprema se constitui como instância legitimada para buscar garantia de direitos.

 

Qual é a base da argumentação da ADPF? Quais são os pleitos?

 

Trata-se de uma ação de proteção ao planejamento familiar e proteção social à maternidade e à infância diante da epidemia do vírus zika. Ela está estruturada em três pedidos. O primeiro, para todas as mulheres grávidas, é a garantia de acesso à informação sobre o estado atual do conhecimento médico sobre a epidemia do vírus zika, incertezas e riscos da infecção, incluindo ainda o acesso ao diagnóstico clínico ou outro disponível para a infecção pelo vírus na rotina do pré-natal. Em seguida, para todas as mulheres, o direito à interrupção da gestação. O direito à interrupção da gestação não é por má-formação no feto, mas pela tortura psicológica e o desamparo impostos à mulher pela gravidez em tempo de epidemia, cujas consequências à sua saúde ou de seu futuro filho ainda são desconhecidas. Em terceiro, para todas as mulheres afetadas pelo vírus zika e que deem à luz a crianças com deficiência, uma política de proteção social à maternidade e à infância, com uma demanda imediata de suspensão do critério de renda familiar de ¼ de salário mínimo per capita para acesso ao Benefício de Prestação Continuada. [Em 27 de janeiro deste ano, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome divulgou que mães de crianças diagnosticadas com microcefalia podem se inscrever no Benefício de Prestação Continuada (BPC), desde que a família tenha renda mensal por pessoa inferior a um quarto do salário mínimo. O BPC garante a transferência mensal de um salário mínimo.]

 

 

Quais são as chances reais de a ADPF ter um resultado favorável ao direito da mulher em um país tão conservador como o Brasil, onde as pautas do campo “moral” tem adquirido uma relevância política cada vez maior?

 

É difícil avaliar a chance de sucesso neste momento, mas a expectativa é justamente de que, sendo tratada na Corte Suprema, a questão seja analisada sob a ótica da proteção de direitos e garantias fundamentais, e não seja ameaçada por um conservadorismo político pernicioso aos direitos das mulheres.

 

Setores contrários à legalização do aborto nos casos de microcefalia classificam como eugenia a prática abortiva nestas situações. Como se contrapor a este argumento?

 

Não há eugenia na proposta, esse é um argumento que confunde a conversa. Caso o pedido seja acatado, não haverá um Estado autoritário obrigando as mulheres a interromperem a gestação, nem mesmo recomendação ou incentivo ao aborto. O que haverá é o reconhecimento de que a decisão reprodutiva, especialmente em um contexto de epidemia grave, cabe unicamente à mulher, na singularidade de suas convicções e crenças. Não se trata nem mesmo de sugerir que os fetos possivelmente infectados pelo vírus zika são vidas que não merecem ser vividas: não há esse juízo porque o que se abre é a possibilidade de decisão sobre seguir ou não com a gestação e o motivo de autorizar o aborto não será uma avaliação sobre a qualidade dessa vida. O direito ao aborto nesses casos se impõe pelo reconhecimento do Estado de que há um desamparo às mulheres grávidas, como resultado de uma longa história de negligência do Estado brasileiro em não eliminar o vetor do vírus causador da infecção e em criminalizar o aborto.

 

Vocês têm chamado atenção para histórias de mulheres que estão sendo abandonadas pelos “companheiros”, que estão desistindo da vida produtiva para se dedicar ao cuidado dos filhos com microcefalia ou outros transtornos neurológicos associados ao zika, e ressaltado o papel do Estado e a necessidade de caracterizar essa situação como “duplo abandono”. Poderia explicar?

 

O duplo abandono está em ser uma mulher desprotegida das políticas sociais, pois não há políticas de saúde nem de assistência social focalizadas para os efeitos da epidemia, e ainda abandonada pelo companheiro, deixada para viver a maternidade em uma experiência de absoluta solidão e desamparo. O abandono dos homens reflete um regime do gênero injusto às mulheres, e o abandono do Estado configura uma violação dos direitos fundamentais dessas mulheres. Por isso é duplo.

 

Em relação à criminalização do aborto em geral, é quase consenso que as mulheres mais prejudicadas são justamente as mais vulneráveis, sobre as quais recai uma carga enorme de marginalizações, de gênero, de raça, de classe social. Gostaria que você falasse sobre isso e ligasse essa situação já bastante conhecida a essa nova situação da zika congênita.

 

Sim, os efeitos da epidemia do vírus zika também espelham a desigualdade social brasileira. A população de maior risco à epidemia são mulheres pobres e negras do Nordeste do país. Elas vivem em áreas em condições sanitárias precárias e têm acesso irregular à água potável, o que contribui à proliferação de doenças transmitidas por mosquitos, e têm ainda escasso acesso à informação e aos serviços de atenção à saúde. Essas são mulheres que não sabem como a infecção pelo vírus zika pode afetar sua gestação e sua própria saúde. São mulheres que não têm o direito de interromper legalmente a gestação, nem podem pagar por abortos ilegais e seguros. São ainda mulheres que não têm recursos para cuidar de seus futuros filhos que possam ser afetados pela infecção. A gestação compulsória no contexto da epidemia potencialmente as submete à tortura psicológica e potencial prejuízo a sua saúde física, psicológica e social, e a falta de políticas sociais focalizadas para a maternidade e a infância as submete ao abandono e violação de seus direitos fundamentais. Essa é a face cruel da epidemia sobre as mulheres, e que não pode ser esquecida.

 

Hoje, três países da América Latina proíbem o aborto em qualquer circunstância: Nicarágua, Honduras e El Salvador. As autoridades deste último “pediram” que as mulheres “evitem” engravidar até 2018 por causa do zika vírus.  Queria que você comentasse esse contrassenso e, principalmente, a ideia de que depende só da mulher “evitar” uma gravidez em países com estatísticas tão ruins de violência contra a mulher.

 

Essa recomendação não pode ser tomada como uma diretriz de política pública séria. Além de desrespeitosa, por invadir a esfera da autonomia reprodutiva, é violenta porque sugere algo que as mulheres sequer podem cumprir caso queiram. Em toda a América Latina, as políticas de planejamento familiar são precárias, não há acesso regular a contraceptivos nem a educação sexual, não há direito ao aborto. Sem contar as altas taxas de violência sexual e gestações decorrentes de estupros. Quando o ministro brasileiro ou nossos demais vizinhos na América Latina pedem que as mulheres não engravidem para evitar o nascimento de bebês com síndromes decorrentes do vírus zika, no fundo estão buscando se esquivar do que é de fato o problema: as mulheres não têm seus direitos sexuais e reprodutivos garantidos para enfrentar essa epidemia. O que esse discurso provoca é uma responsabilização cruel das mulheres por um percurso reprodutivo que, em geral, elas não têm autonomia para gerir.

 

A partir da multiplicação de casos de microcefalia, muitas matérias de veículos estrangeiros – mas também na mídia nacional – chamaram atenção para o atraso do Brasil em relação a discussões de liberdade reprodutiva. Quais são os países mais avançados nessa discussão e onde nós estamos nesse cenário?

 

O Brasil está muito atrasado nessa discussão. Temos uma das legislações mais restritivas do mundo, assim como a maioria de nossos vizinhos na América Latina. Já há muitos países que permitem a interrupção da gestação por simples solicitação da mulher, sem nenhuma condicionante de motivação, com variações apenas quanto até qual período da gestação isso pode ser feito. Nessa categoria estão a quase totalidade dos países europeus, por exemplo, Estados Unidos, Canadá, Austrália, África do Sul e nosso vizinho Uruguai.

 

Você coordenou uma pesquisa ampla sobre a prática do aborto no Brasil. Poderia nos atualizar sobre o perfil e as condições às quais são submetidas as mulheres que realizam aborto hoje?

 

A pesquisa que desenvolvemos – Pesquisa Nacional do Aborto (PNA) de 2010 – é ainda a fonte mais confiável sobre aborto ilegal no Brasil. Nessa pesquisa constatamos que mais de uma em cada cinco mulheres até os 40 anos no Brasil realizou pelo menos um aborto. Ou seja, o aborto é um evento reprodutivo comum na vida das mulheres, apesar de ilegal. As mulheres que o fazem são igualmente comuns: a maioria tem filhos, é casada e professa a religião católica.

 

Em relação ao nosso sistema de saúde, caso avancemos na legalização do aborto, precisaríamos de reformulações para atender essas mulheres?

 

A atual política de saúde para o abortamento legal, conforme regulada pelo Ministério da Saúde, é adequada ao atendimento sensível às mulheres. O problema é que a previsão da política não é plenamente cumprida pelos serviços de aborto legal. Então, o que é necessário, seja para novos casos de permissão da interrupção da gravidez ou para aqueles já previstos atualmente, é a capacitação e sensibilização dos profissionais para que prestem o serviço sem opor barreiras injustificadas às mulheres, e que ofereçam um atendimento em saúde livre de estigmas.

 

Falando um pouco de Congresso Nacional, o deputado Anderson Ferreira (PR-CE), autor do Estatuto da Família, apresentou recentemente o PL 4396/2016 que visa criminalizar o aborto em casos de microcefalia, para, segundo ele, fechar brechas, impedindo que o Judiciário decida. Primeiro, uma dúvida técnica: se um projeto desses passa, o Supremo fica impedido de decidir favoravelmente a ADPF?

 

Não haveria impedimento à tramitação da ação por dois motivos. Primeiro que essa não é uma ação que tem por único objetivo discutir a interrupção da gravidez, mas é uma ação ampla de proteção ao planejamento familiar e proteção social à maternidade e à infância. Segundo, e talvez mais importante, não haveria impedimento porque não discutimos na ação a permissão do aborto para fetos com microcefalia, e sim para mulheres infectadas pelo vírus zika, em um contexto de emergência de saúde pública. Há uma profunda incompreensão do deputado sobre o que seria nossa ação e sobre o que pedimos neste momento.

 

Entrando na seara política, gostaria que fizesse um balanço da ofensiva do Congresso contra os direitos reprodutivos das mulheres, já que, no ano passado, voltou à pauta o PL 5069/2013, que impacta o atendimento à vítima de violência sexual, além de outros vários projetos que querem dificultar o acesso ou mesmo criminalizar o aborto – e até os profissionais da saúde – nos casos já previstos por lei.

 

A atual legislatura do Congresso Nacional é das mais conservadoras que já tivemos, e isso se reflete de maneira particularmente cruel às demandas de proteção de direitos das mulheres. O PL 4396 de 2016 é dos exemplos mais claros disso: em um contexto de emergência de saúde pública de graves efeitos, a primeira resposta que emerge do Congresso é uma de maior criminalização e precarização da vida das mulheres. É sintomático.

 

O mesmo deputado Anderson afirma, com frequência, que o movimento feminista “vai na contramão da sociedade” ou que o movimento LGBTTT “divide” uma sociedade “que não está dividida”, que é “predominantemente cristã”, etc. Como desmontar esse discurso que bloqueia o avanço dos direitos civis de minorias em nome de uma suposta maioria que deveria ser respeitada ou de um suposto consenso social? Como deslocar essa discussão do campo moral-religioso para o campo da Saúde Pública?

 

O deputado fala em nome de maiorias que são homogêneas apenas em discurso. Basta ver que, enquanto pesquisas de opinião mostram que a maioria da população seria contra o aborto, mais de uma em cada cinco mulheres já realizou ao menos um aborto até os 40 anos no Brasil. Então consensos morais não refletem práticas. Quando interpeladas sobre temas sensíveis, as pessoas reproduzem aquilo que acreditam que é a resposta correta ou esperada por uma moral hegemônica. É isso que o deputado diz representar. Mas a discussão não pode se dar nesses termos. É preciso falar de práticas sociais e, no tema do aborto, é preciso falar de mulheres concretas que enfrentam a dura decisão sobre prosseguir ou interromper a gestação e se arriscam em abortos ilegais e inseguros. Um debate sério sobre proteção de direitos deve falar sobre o real, não sobre consensos morais.

 

Dá para fazer um balanço das conquistas e retrocessos do movimento feminista nesses últimos anos no Brasil, tendo como horizonte a conquista, retirada ou mesmo estagnação nos direitos, mas também a organização política popular?

 

O momento político que vivemos, já há alguns anos, é extremamente cruel às mulheres. O que temos feito, ao menos nos espaços institucionais de disputa política, é apenas tentar não retroceder. Por outro lado, a organização popular de mulheres e, inclusive, de adolescentes em torno da pauta feminista tem se fortalecido muito. Se há algo que pode nos encher de esperança é isso: ver cada vez mais mulheres e meninas jovens se organizando para denunciar as desigualdades do gênero.

 

Além do direito ao aborto, quais são as outras pautas mais importantes para o movimento feminista no Brasil hoje?

 

Talvez não seja possível fazer hierarquia de pautas, mas outra igualmente importante é o combate à violência contra a mulher. Ainda somos um país de dados alarmantes quanto à violência cometida dentro da casa contra as mulheres.

 

 

Entrevista concedida por e-mail à Maíra Mathias em 7 de março de 2016.

 

Veículo: FIOCRUZ

 

Data de publicação: 07.03.2016

 

Link original para a matéria: http://www.epsjv.fiocruz.br/index.php?Area=Entrevista&Num=140

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